JR – Antes de entrar nos assuntos que são objeto desta entrevista, poderia falar um pouco do seu histórico funcional?
Márcio Barenco Corrêa de Mello (MBCM) – Sou magistrado há cerca de 10 anos e estou atuando na região há, aproximadamente, nove anos, tendo sido titular na Comarca de Cordeiro por cerca de dois anos e meio. Estou há quase seis anos e meio na qualidade de titular de Cantagalo, sendo o magistrado que ficou mais tempo no referido cargo, desde a criação da Comarca.
JR – Por que escolheu a Comarca de Cantagalo para exercer suas funções de juiz?
MBCM – O que me trouxe até a região foi o fato de possuir alguns parentes do meu finado pai na cidade de Carmo. Passei parte da minha infância e adolescência por lá, principalmente nos períodos de férias. Portanto, tenho grande afinidade pela região. Quanto à escolha, ao contrário do que algumas pessoas imaginam, Cantagalo possui quase o mesmo volume de processos e trabalho que a Comarca de Cordeiro. Quando assumi a titularidade de Cantagalo, encontrei um cenário muito favorável, uma vez que a minha antecessora desenvolveu uma excelente atividade judicante. O que tive que fazer foi manter o bom trabalho da colega e acrescentar algumas outras rotinas, que fizeram de Cantagalo, segundo a população e os operadores do Direito, uma das melhores Comarcas da região. Outro fator importante é que encontrei muitas pessoas sérias aqui, dispostas a criar melhorias, desenvolver o bem comum e a qualidade de vida dos munícipes em geral. Cito, por exemplo, o ex-prefeito Joaquim Augusto de Paula e, mais atualmente, o prefeito Saulo Gouvea. Além de pessoas honestas e probas, sempre se mostraram dispostas a colaborar para desenvolver boas parcerias entre os poderes Executivo e Judiciário. Não posso deixar de citar o ex-vereador Heitor Villa Nova Purger e, mais recentemente, a vereadora Renata Huguenin, que também sempre trabalharam para a melhora da qualidade de vida da população local. Em suma, trabalhar em parceria com pessoas sérias e comprometidas facilita os objetivos a serem almejados.
“Quando um criminoso é solto, para que possa responder um determinado processo em liberdade, nada mais faz o juiz que aplicar a lei. O grande problema é que a população enxerga o fato como sendo uma espécie de deficiência do Poder Judiciário, mas se esquece, talvez por falta de informação, que a lei é que garante determinada pessoa responder o processo em liberdade.”
JR – Poderia falar sobre o aumento dos índices de criminalidade e o respectivo motivo?
MBCM – Retornando à minha infância, na pequena e pacata cidade de Carmo, lembro-me, saudosamente, que as janelas e portas das casas ficavam abertas e destrancadas, mesmo no período noturno. Lembro-me, também, que as chaves ficavam nas ignições dos veículos e, muito raramente, se ouvia falar de algum crime. Tenho certeza que Cantagalo, no passado, também era assim. Infelizmente, as coisas estão mudadas. Quase que diariamente, ouço queixas da população pela prática de quase todos os delitos na cidade. O uso de entorpecentes lidera o número de reclamações. Lamentavelmente, todo o tipo de droga chegou a Cantagalo, principalmente o “crack”, que possui preço pequeno, mas um enorme poder de destruição e dependência. Já ouvi todo o tipo de causa para tanto. Que as UPP (Unidades de Polícia Pacificadora) “empurraram” a criminalidade para o interior, por exemplo. Não sou um estudioso sobre o assunto e também não possuo nenhum tipo de tese, mas o fato é que, antes de mais nada, o problema da droga é social e de saúde pública. Deveriam existir mais programas de governo para tirar os jovens ociosos das ruas, dando-lhes mais oportunidades de estudo e de formação profissional. Já dizia o meu falecido avô: “a mente vazia é a oficina do diabo”. E mais: aqueles que já possuem alguma dependência física ou psíquica, deveriam ser tratados como verdadeiros pacientes, inclusive com internação compulsória, se isso for necessário. O grande problema do entorpecente é que vai desencadear em vários outros crimes, de natureza mais leve, como, por exemplo, pequenos furtos na cidade.
JR – O que fazer para tentar oprimir o tráfico de entorpecentes então?
MBCM – A resposta não pode ser outra e deve ser tratada como matéria de segurança pública. As nossas polícias, mesmo sem a estrutura e efetivo desejados, desenvolvem, corriqueiramente, várias ações, na tentativa de reprimir o tráfico, como ocorreu recentemente nos bairros Felipe João e São José, além de outras diversas localidades do extenso município de Cantagalo.
JR – Como manter esses criminosos presos, diante da fragilidade e das brechas criadas pela legislação penal?
MBCM – Foi bom tocar neste ponto. Um magistrado, quando toma posse, no início da sua carreira, faz um juramento solene de cumprir a Constituição Federal, as leis e as decisões dos tribunais superiores, com força vinculativa. Quando um criminoso é solto, para que possa responder um determinado processo em liberdade, nada mais faz o juiz que aplicar a lei. O grande problema é que a população enxerga o fato como sendo uma espécie de deficiência do Poder Judiciário, mas se esquece, talvez por falta de informação, que a lei é que garante determinada pessoa responder o processo em liberdade. Os exemplos são muitos. Alguns réus, envolvidos no processo criminal conhecido como “mensalão”, estão condenados, mas respondem ao processo em liberdade. Se queremos mudanças sérias e verdadeiras, temos que cobrar daqueles que fazem as leis, isto é, dos deputados e senadores, que todos nós elegemos. Eles, sim, podem endurecer a lei e diminuir as brechas no sistema legal, que só aumentam a sensação de impunidade. O assunto que está em voga no momento é a redução da maioridade penal. Não dá, por exemplo, para aguentar mais tantos crimes hediondos praticados por menores, que se escondem atrás do Estatuto da Criança e do Adolescente. Esse é só um dos assuntos polêmicos. Em outras palavras, não adianta colocar a culpa apenas na Justiça, principalmente se a ferramenta que o magistrado se utiliza está defeituosa.
JR – A nova Lei de Entorpecentes é, então, mais branda para o criminoso?
MBCM – O que acontece é o seguinte: durante muitos anos, a lei utilizada para o combate ao tráfico de entorpecentes foi a de nº 6.368, de 1976. Embora antiga, a lei, dentro das suas possibilidades, era, de certo modo, eficaz, e tirava o criminoso das ruas por, no mínimo, dois anos. A pena mínima era de três anos e o condenado passava dois terços da pena encarcerado. Trinta anos depois, foi editada a Lei nº 11.343, de 2006. Parecia, num primeiro momento, que iria endurecer o cenário para os traficantes. A pena mínima para o delito de tráfico foi majorada para cinco anos de reclusão. Todavia, o parágrafo 4º do artigo 33 da citada lei trouxe, infelizmente, uma causa de redução de pena para os casos em que o réu é primário e de bons antecedentes. Hoje, para se ter uma ideia, a pena, nesses casos, fica em um ano e oito meses de reclusão, menor, portanto, do que a da antiga lei. E não para por aí. O Supremo Tribunal Federal, numa decisão, embora tecnicamente acertada, inovou e trouxe a possibilidade de o condenado ter a sua pena privativa de liberdade convertida em restritiva de direitos. Em outras palavras, troca-se a prisão pelo pagamento de multas, valores, prestação de serviços à comunidade, dentre outras. Tal instituto é vulgarmente conhecido como “Pena Alternativa”. O problema é que esse tipo de pena alternativa, principalmente no crime de tráfico, traz a sensação de impunidade para a comunidade local.
JR – Para que o leigo possa entender, hoje em dia o traficante primário e de bons antecedentes pode responder ao processo em liberdade e terá sua pena convertida em alternativa?
MBCM – Exatamente isso. Hoje, uma pessoa condenada por tráfico de entorpecentes, se primário e sem maus antecedentes, pode responder o processo em liberdade e não ficará preso depois de condenado, sendo que a lei lhe faculta várias alternativas para se livrar do encarceramento.
JR – Como, então, tirar algum proveito dessa situação injusta sem aumentar a sensação de impunidade?
MBCM – Pois bem, esse é o ponto principal a ser enfrentado nesta entrevista. Aqui, em Cantagalo, com a ajuda do promotor de Justiça, Dr. Ângelo Joaquim Gouvêa Neto, e da valiosa contribuição do defensor público, Dr. Marcelo de Souza Galliez, implementamos, como já acontece nas grandes cidades, uma espécie de Central de Penas e Medidas Alternativas (CPMA). Em outras palavras, quando a lei faculta ao réu, e até mesmo depois de condenado, responder o processo em liberdade, marcamos uma audiência especial com o intuito de reverter a pena alternativa, geralmente de pecúnia (dinheiro) para uma das instituições cadastradas neste Juízo ou, ainda, órgãos públicos, também previamente cadastrados.
JR – Quais são essas instituições e órgãos públicos cadastrados para o recebimento de penas alternativas?
MBCM – O Asilo da Velhice Visconde de Pinheiro; a Associação Pestalozzi de Cantagalo, que, inclusive, foi objeto de matéria por esse jornal na edição nº 1.226; a Sociedade Espírita Jesus Escola (Lar de Meimei); o DPO (Departamento de Policiamento Ostensivo) da Polícia Militar em Cantagalo; a Delegacia de Polícia de Cantagalo; e a Pastoral Social da Igreja Católica.
JR – Poderia enumerar quais os benefícios que essas instituições e órgãos públicos receberam nos últimos anos?
MBCM – Desde que assumi a mencionada postura, já foram empregados os seguintes valores nas respectivas instituições: R$ 27 mil em reforma dos leitos, substituição dos pisos, substituição de portas e janelas, eletrodomésticos, materiais de consumo e alimentação, para melhor conforto e funcionamento do Asilo da Velhice Visconde de Pinheiro; R$ 5,888 mil utilizados para aquisição de camas, colchões, roupas de cama, banho e cobertores, donativos às famílias carentes do município, através da Sociedade Espírita Jesus Escola (Lar de Meimei); R$ 6 mil empregados na aquisição de materiais pedagógicos, esportivos, de consumo, alimentação e utensílios para cozinha, estes para servir à Associação Pestalozzi de Cantagalo; R$ 4,806 mil empregados em eletromóveis, manutenção e pneus das viaturas em benefício da 153ª Delegacia Policial de Cantagalo; R$ 8,6 mil na aquisição de computador, com impressora, eletromóveis, móveis de escritório, recepção, material de escritório e consumo para futuras instalações do DPO da Polícia Militar em Cantagalo, além de várias cestas básicas para a Pastoral Social da Igreja Católica. Portanto, até o momento, foram repassados valores que ultrapassam o patamar de R$ 52 mil às instituições e órgãos do município.
JR – Estão previstas novas doações?
MBCM – Sim. No último dia 29 de maio, por exemplo, ocorreu uma importante operação no bairro São José, na qual foram presos quatro indivíduos. Seguindo a orientação acima descrita, dois deles foram condenados e tiveram suas penas convertidas em penas alternativas. Diante disso, foram angariados, aproximadamente, R$ 30 mil. Esse valor, juntamente com outros já existentes, será utilizado para a aquisição de uma ambulância para o Asilo da Velhice Visconde de Pinheiro, uma necessidade antiga da instituição.
JR – Em sua opinião, a conversão da pena é o melhor caminho?
MBCM – Nesse cenário que se apresenta, sim. Em que pese considerar o agravamento das penas, a melhor solução, no atual quadro legislativo, entendo ser mais eficaz e benéfico para toda a sociedade civil a utilização dos valores para melhorias em instituições locais do que a aprisionamento de indivíduos primários nas conhecidas penitenciárias nacionais, que nada mais são do que verdadeiras “universidades do crime”. O que a sociedade precisa visualizar são os benefícios imediatos alcançados pela cidade de Cantagalo com esse tipo de penas alternativas, tanto nos órgãos públicos quanto nas instituições desta cidade.
JR – No caso de reincidência no cometimento do crime, principalmente por tráfico de entorpecentes, o réu terá o mesmo benefício da aplicação de pena alternativa?
MBCM – Primeiro, é bom esclarecer que todos esses réus, ao longo dos anos, pagaram algum tipo de valor, que foi revertido para as instituições ou órgãos cadastrados, e saíram condenados por este Juízo de Direito da Vara Única de Cantagalo. Em resumo, não existe a possibilidade de alguém cumprir uma pena alternativa sem que, antes, tenha sofrido uma condenação penal. Equivale dizer que, voltando a praticar um delito, o réu não ostentará mais a qualidade de primário e de bons antecedentes e, no caso de tráfico, não mais será possível a conversão da pena privativa de liberdade em pena alternativa. Recentemente, um determinado réu foi beneficiado com o sistema de implementação de pena alternativa. Pagou determinado valor e, após, condenado, passou a responder o processo em liberdade. No entanto, cerca de dois ou três meses após, o réu foi preso, em flagrante, pelo mesmo delito de tráfico de drogas, o que culminou na sua condenação à pena de 10 anos de reclusão, com o regime inicialmente fechado, sem nenhum tipo de benefício.
JR – Algum outro esclarecimento que ache pertinente a respeito das penas alternativas?
MBCM – Na verdade, sim. Gostaria, por meio deste veículo de informação, de pedir que toda a população cantagalense exerça o seu papel fiscalizador e vá aos mencionados órgãos públicos e instituições para que, efetivamente, constatem todos os benefícios que foram realizados ao longo dos anos, como as já mencionadas penas alternativas, esperando que, em breve, este mesmo veículo de comunicação possa fazer a cobertura da entrega da tão sonhada e almejada ambulância ao Asilo da Velhice Visconde de Pinheiro.