Um jardim de memória

Cantagalo tem a Praça

toda cheia de verdor

que a todos com muita graça

acolhe com grande amor.

(HennyKropf)

*Fabiana Figueira Corrêa 

Os lugares de memória são o que resta e o que  se perpetua de um tempo ao outro, de uma geração anterior às que a sucedem. A sociedade necessita dos lugares de memória, pois neles acontece a história vivenciada dia a dia, construída pelos acontecimentos corriqueiros ou grandiosos, consolidada por um espaço social e coletivo. Um lugar de memória pode ser material ou imaterial, desde que seja o palco onde se cristaliza a memória de uma sociedade, e mesmo de uma nação, sendo este um local onde diferentes grupos se identificam e se reconhecem. Sendo assim, podemos admitir que o lugar de memória possibilita a existência de um sentimento de formação da identidade e de pertencimento. Trilhando os caminhos de nossa rica história de 200 anos, vamos nos propor uma breve pausa nas reflexões ambientais que nos levaram por matas virgens e campos de café, para reconhecermos, no coração da cidade de Cantagalo, um rico e verde lugar de memória: a Praça João XXIII.

A Praça João XXIII localiza-se no Centro da cidade de Cantagalo, sendo uma referência para os moradores de todas as idades, um local de encontro, de chegadas e de partidas. Uma visita, em diferentes horas do dia, nos faz perceber que pessoas de todas as idades buscam, entre seus bancos, canteiros e árvores, refúgio, abrigo, descanso, recreação, sombra e companhia. É na Praça João XXIII, que chamamos de “jardim”, que brincamos quando bebês, conhecemos nossos primeiros amigos, fortalecemos nossas amizades, declaramos paixão, amor, contamos segredos, lemos um livro ou, simplesmente, relaxamos. A Praça João XXIII já traz em sua história a memória de outros nomes, pois já foi Praça XV de Novembro, Parque Euclides da Cunha e Praça dos Melros. No entanto, na memória afetiva de muitos cantagalenses, de todas as idades e origens, é ela, simples e grandiosamente, o jardim de Cantagalo. Alguns chegam a questionar a origem de sua nomeação como jardim: seria tão e somente por ocupar uma posição central na cidade, sendo o seu coração verde e o jardim de todos os cantagalenses, ou seria, ainda, uma alusão ao jardim do Barão, como uma extensão de sua casa em Cantagalo, situada em seu entorno e que, hoje, abriga o Fórum da cidade? Independente de confirmações históricas ou acadêmicas, é fato que a Praça João XXIII é o jardim de Cantagalo. Quanto zelo devemos ter com ele? Um jardim é sempre um bom cartão de visitas para uma casa. O que seria então um jardim de uma cidade? No caso do jardim de Cantagalo, além de cartão de visitas, é cartão postal e lugar de memória. Sendo assim, além de zelo, há que se aliar conhecimento ao cuidado, para que, além do patrimônio vivo ali encontrado, seja preservada, também, a memória nele consolidada através dos tempos.

Os canteiros do jardim, bem como o coreto e o “senadinho”, sofrem o peso dos anos sem restauro, durante os quais, a reposição de espécimes vegetais perdidas pelo envelhecimento, fatalidade ou leviandade de alguns grupos da população, não obedeceu a nenhum critério para que o projeto original fosse mantido. De qualquer forma, devemos ser gratos às diferentes gerações de funcionários “jardineiros” que preservaram, a custas, em grande parte, de sua boa vontade, o patrimônio verde que encontramos hoje no jardim. Apesar de muitas lacunas existirem na história documentada do jardim, podemos contá-la através de alguns fatos, como o de que o 2º Barão de Cantagalo, Augusto de Souza Brandão, foi o responsável por sua construção, ainda no século XIX. E que, em seus primeiros anos, o jardim era cercado por grades de ferro. Podemos dizer, também, que o coreto, hoje o único patrimônio tombado pelo Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural) no histórico município de Cantagalo, foi construído bem mais tarde, em 1928. Já em 1930, foram retiradas as grades do jardim, por determinação do prefeito Acácio Ferreira Dias, e que estas foram levadas para o adro da Igreja de Nossa Senhora da Piedade, em Cordeiro. Muitos são os fatos que enriquecem de história os canteiros do jardim, como a inauguração da herma de Euclydes da Cunha, em 1919, quando foi entoado, pela primeira vez, o Hino de Cantagalo; o plantio, em 1935, de uma muda de alfarrobeira, doada pela professora Amélia Tomás. Mas que cargas históricas descansam à sombra desta alfarrobeira? Simples responder: suas sementes foram trazidas de Cuba, em 1855, pelo Conde de Nova Friburgo. Outra curiosidade sobre os canteiros do jardim se encerra em seu próprio solo: uma generosa camada de terra foi agregada à sua composição original, na década de 1940, por ocasião da preparação do terreno para a construção do Colégio Estadual Lameira de Andrade. Ou seja, os canteiros receberam terra originária do morro do antigo cemitério da cidade.

Não bastassem todas as histórias, todas as memórias, todos os fatos e casos que orbitam ao longo de bem mais do que um século no jardim, há que se considerar que este espaço é, por si só, um jardim histórico, encerrando, nesta perspectiva, mais valor e importância. Os jardins históricos são considerados como os sítios e paisagens agenciados pelo homem, como por exemplo, jardins botânicos, praças, parques, largos, passeios públicos, alamedas, hortos, pomares, quintais, jardins privados e jardins de tradição familiar. Nestes jardins, existem a natureza e a história, que são elementos vivos e dinâmicos em constante mutação. Sendo assim, preservá-los é um ato de respeito à vida, ao equilibro ambiental, à memória e ao legado humano. Defendê-los é induzir gerações contemporâneas e futuras a atitudes de maior zelo por esse patrimônio. O jardim de Cantagalo, sendo um jardim histórico, é um rico testemunho entre a relação de cultura e a natureza. Sua preservação não encerra apenas a necessidade de cuidar de um legado do passado, mas a de criar condições para novos bens que irão enriquecer a herança do futuro. A população de Cantagalo já considera o jardim como um patrimônio simbólico e afetivo e constitui este espaço como área de convívio e senso comunitário. Sua diversidade ecológica e genética – que pode, deve e merece ser estudada e conhecida – é um fator de valorização ambiental, além do aspecto social e da identidade cultural. Assim sendo, a Praça João XXIII, o jardim de Cantagalo, se apresenta como um desafio, dentro dos 200 anos de nossa história, para se perpetuar como um lugar de biodiversidade, um lugar de história, um lugar de memória no coração da cidade.

*Fabiana Figueira Corrêa é professora de biologia, coordenadora do Projeto Cambucás (Colégio Euclides da Cunha) e coordenadora de Projetos Ambientais e Pedagógicos do Projeto Fazenda São Clemente.

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