Muito além de um jardim

O valoroso patrimônio arquitetônico do nosso município, composto por inúmeras edificações consagradas pela sua inegável importância histórica, possibilita a quem os usufrui, observa e estuda, uma experiência concreta de evocação ao passado. Sendo, portanto, da maior importância preservá-lo, para que cumpra a função de transmitir às gerações presentes e futuras a memória das suas respectivas épocas, conectando os munícipes à formação histórica de Cantagalo e região.

Porém, nas últimas décadas da nossa já bicentenária história, constata-se, por vezes, o ímpeto com o qual as gestões municipais dedicaram-se, imbuídas de uma fé reformadora e ansiosas em deixarem suas marcas indeléveis nos destinos da coletividade, à malfadada agenda de descaracterização do patrimônio cultural do povo cantagalense. Justificadas por argumentos “modernizantes”, as ações públicas se desdobram, gerando, quase sempre, um saldo de impactos negativos ao precioso legado dos nossos antepassados.

No entanto, em se tratando de um bem patrimonial central (no sentido de sua localização física dentro da cidade e em termos simbólicos) como o jardim da Praça João XXIII, o nosso “Jardim do Barão” (ver artigo publicado na edição no 1.270 do JR), sabiamente o legislador municipal assentou em vários diplomas legais, sólidos pilares normativos, com o objetivo de regular futuras intervenções.

A Lei Orgânica de Cantagalo, em sua inequívoca e incisiva abordagem sobre a salvaguarda do patrimônio cultural do município, determina, no artigo 277, inciso X, que cabe ao Poder Público a “preservação, conservação e recuperação de bens nas cidades e sítios considerados instrumentos históricos e arquitetônicos”. Como também em seu artigo 279, parágrafo 2º, assinala que: “Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos na forma da lei.”

Já a Lei Complementar n° 01/2006, que colocou em vigor o Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentável do Município (diploma legal gerado a partir de relevante discussão democrática envolvendo inúmeros setores da sociedade cantagalense e os poderes Legislativo e Executivo), trata especificamente do logradouro em questão, e o elege à condição de área central da “Zona de Preservação Cultural e Histórica”, por compor o núcleo original da cidade de Cantagalo, como também por seu inegável e inestimável valor histórico, cultural e ambiental; cabendo, então, ao Executivo, assegurar a manutenção de suas características urbanísticas e arquitetônicas.

Distanciando-se um pouco da seara legal e colocando em evidência a perspectiva dos memorialistas e pesquisadores que cultuam a história do município, há fortes evidências no sentido de que o espaço público objeto deste artigo tenha sido projetado por Auguste François Marie Glaziou, extraordinário paisagista do Segundo Império, responsável, entre outras realizações, pelas reformas do Passeio Público e do Campo de Santana, no Rio de Janeiro; pela criação dos jardins da Quinta da Boa Vista, ainda na capital; dos jardins do Museu Imperial, em Petrópolis, e do Parque São Clemente, em Nova Friburgo.

Na visão dos especialistas em patrimônio histórico, o nosso jardim é um bem arquitetônico e paisagístico de aproximadamente 150 anos de existência, que assumiu a sua feição primordial sob as ordens do 2º Barão de Cantagalo, e que possui uma unidade estética característica, onde se destacam sinuosas alamedas, definidas por canteiros que conformam o perímetro de um quadrilátero no qual em dois dos seus lados assentam-se frondosas árvores frutíferas e nos outros há o domínio das madeiras-de-lei, tendo a expressão de palmeiras imperiais ao centro; tratando-se, inequivocamente, de um jardim histórico nos moldes da escola paisagística de Glaziou e, enquanto tal, à luz da “Carta de Juiz de Fora” ou “Carta dos Jardins Históricos Brasileiros”, firmada em 7 de outubro de 2010, deve ser entendido como “monumento”.

Cabe ressaltar, também, que o jardim da Praça João XXIII abriga o único bem tombado pelo Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Artístico e Cultural) no município, qual seja: o harmonioso conjunto arquitetônico composto pelo coreto e o pequeno lago ao seu redor, que os munícipes denominam carinhosamente como “Repuxo”.

Assim sendo, a partir do ponto de vista de inúmeros estudiosos, e à luz da lei e do bom senso, é de fundamental importância que o jardim da Praça João XXIII seja preservado em sua integridade arquitetônica e em seu projeto paisagístico original. As futuras gerações não nos perdoarão se submetermos esse precioso logradouro a qualquer espécie de modificação que se afaste do propósito de realizar uma restauração criteriosa e necessária. Como afirmava o grande e saudoso sociólogo Herbert de Souza, o Betinho: “aquilo que recebemos dos nossos antepassados apenas tomamos de empréstimos às gerações futuras”.

*João Bôsco de Paula Bon Cardoso é professor de sociologia e geografia, coordenador de Patrimônio Cultural do Projeto Fazenda São Clemente e um dos coordenadores do Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo.

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