Sobre o edificado e o nada edificante

Na segunda metade do século XIX, quando tão somente a altiva cruz da cúpula da Igreja Católica dominava os céus da cidade de São Pedro de Cantagallo, a estrutura urbana do centro era marcada pela onipresença dos casarões. Com traços arquitetônicos que apresentavam interessante variedade, transitando desde o colonial mineiro até edificações com os ares europeus do neoclássico, não só atestavam o poderio da aristocracia rural, como embelezavam, na diversidade de suas fachadas, as ruas do coração econômico e político da região.

Construídos a fim de tornarem-se as moradas urbanas dos fazendeiros de café, os sobrados, contudo, não desfrutavam da presença diuturna desses poderosos patriarcas; pois estes, após a resolução de questões de ordem política, econômica e jurídica na urbis, ou quando do término das festividades religiosas, retornavam às suntuosas sedes de fazendas, objetivando vistoriar e administrar, in loco, seus vultosos negócios rurais, que tinham como “carro chefe” o plantio, a colheita e o beneficiamento primário, do gênero agrícola considerado, na época, o “ouro verde” do Vale do Paraíba Fluminense.

A observação dos mapas da cidade de São Pedro de Cantagallo em seus primórdios, sugere a preocupação em se criar um espaço planejado, no qual, apesar das reduzidas dimensões de um estreito vale ladeado por morros, houve a intensão em estabelecer, no ponto central da povoação, o quadrilátero da Praça da Matriz e, ao seu redor, em traçado um tanto quanto regular e geométrico, as suas ruas. Estas, à época, apesar de conterem calçadas de adobe e pavimentação composta por chão batido e pedras lavradas, atendiam perfeitamente às necessidades de mobilidade dos cidadãos e do transporte de mercadorias. 

Nada semelhante ao que se vê na cidade, nos dias atuais. A área central, projetada há dois séculos, presencia, impassível, o exponencial aumento do número de transeuntes, motocicletas, automóveis e caminhões. Um fluxo viário cada vez mais intenso começa a sufocar suas estreitas ruas, e o antigo traçado das mesmas já enfrenta significativa sobrecarga.

Em se tratando de um município bicentenário como o nosso, outro aspecto preocupante, no âmbito das questões referentes à cidade sede, é a descaracterização do centro histórico. Este guarda, ainda, edificações representativas de épocas distintas, estruturadas em camadas arquitetônicas subsequentes… Há construções novecentistas coloniais, como os sobrados (em sua determinação hercúlea em resistir à inexorável ação do tempo e de sobrevier – até quando? – à pressão dos interesses imobiliários), juntamente com a Câmara Municipal e a Maçonaria. Encontram-se também edificações em estilo neoclássico da segunda metade do século XIX, como Fórum e o Templo Católico; que passaram a conviver, no século XX, com um característico casario remanescente das décadas de 1940 e 1950, até que, mais tarde, sob inspiração modernista, ergueu-se a sólida estrutura de concreto armado da Prefeitura Municipal. Todos esses estratos arquitetônicos repousam hoje, obrigatoriamente, à sombra dos, cada vez mais esguios e numerosos, prédios de apartamentos.

É sempre forçoso assinalar, a obrigação legal do poder público em preservar o patrimônio edificado sob o seu poder; porém, quanto ao casario histórico de propriedade particular, o futuro é incerto. Apesar da municipalidade deter o direito de preempção (prioridade na compra dos centenários sobrados), a eterna carência de recursos públicos para investimentos e a “modernização” urbana podem varrer das ruas do centro, em poucos anos, o que os nossos antepassados levaram décadas para edificar e que se constitui, ao lado das suntuosas sedes de fazendas e das estruturas remanescentes da Estrada de Ferro Cantagallo, um traço fundamental da identidade dos cantagalenses e importante atrativo turístico.

No momento em que o governo e a sociedade civil reveem o instrumento básico de política urbana do município, qual seja, o Plano Diretor; encaminhamos, através dos trâmites formais, a proposta de manter a limitação do gabarito das construções no centro histórico, principalmente na área ao redor do Jardim; para que este precioso patrimônio cultural e ambiental não seja emparedado por prédios de apartamentos, maculando sua beleza cênica e condenando sua rica cobertura vegetal a uma lenta agonia. Sem contar o fato de que, quanto mais formos permissíveis à verticalização e ao adensamento das edificações nesta tradicional área da cidade, mais caótica se tornará a mobilidade urbana… trajeto nada edificante, para um município que se preocupa com a qualidade de vida dos seus cidadãos e se orgulha da sua História.

*João Bôsco de Paula Bon Cardoso é professor de Sociologia e Geografia, Coordenador de Patrimônio Cultural do Projeto Fazenda São Clemente e um dos coordenadores do Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo


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