Na minha juventude, em nossa região, as cidades do porte de Cantagalo tinham um ou dois médicos, não havendo laboratórios de análises clínicas, nem serviços de raios-x. Os médicos possuíam conhecimentos apuradíssimos de semiologia e faziam brilhantes e acertados diagnósticos, embora os recursos terapêuticos fossem muito limitados.
Os médicos eram venerados pelas populações dos seus municípios, atuando, também, como conselheiros nas horas mais difíceis das famílias, estando presentes desde o nascimento até a última despedida. Eram médicos da família que a medicina, hoje, procura imitar, sem conseguir igualar. Tinham o histórico familiar e pessoal de cada paciente guardados na mente e praticavam a arte de formular medicamentos que, com a industrialização farmacêutica, desapareceu.
Na década de 50, um jovem médico, de origem suíço-alemã, retornou para sua terra natal e conseguiu organizar uma equipe hospitalar com mais dois primos e um proprietário de laboratório de análises clinicas, esse de origem suíço-francesa. Era a primeira cidade do nosso interior a ter um hospital com uma equipe médica. A partir dessa época, os casos que necessitavam internação hospitalar passaram a ser enviados para aquela cidade pelos médicos de seis municípios da região.
Inicialmente, a Santa Casa era bem simples e localizada defronte ao cemitério municipal, sendo separados pelo leito da ferrovia. Diziam os críticos que a localização estava certa, “pois morriam tantos pacientes que, para sepultá-los, bastava atravessar a ferrovia”. As Vicentinas se empenhavam de corpo e alma para manter tudo em ordem e da melhor forma possível.
O jovem médico liderou um movimento para construção de um novo hospital, o que foi realizado no centro da cidade com inteligente projeto arquitetônico aproveitando o aclive da via pública.
No início, esse médico era responsável pela cirurgia, obstetrícia e traumatologia, mas, com o tempo e sentindo a carência de um otorrinolaringologista na região, foi a São Paulo, onde fez um curso nessa especialidade passando a realizar cirurgias de nariz e garganta, as de menores portes.
Em 1963, quando estava como assistente da 2ª Cl. Cirúrgica do H.U. Pedro Ernesto, encontrei-me com esse colega num dos corredores do 4º andar e ele me disse: “estou fazendo um estágio de cirurgia vascular com o Prof. Medina”.
Em 1966, quando eu já havia retornado para Cantagalo, uma noite, ele ligou me convidando-me para fazer um curso de radiologia na cidade do Rio de Janeiro, três vezes por semana. Agradeci e não aceitei o desafio. Ele, mais velho do que eu, frequentou o curso, recebendo o título de radiologista, exercendo essa especialidade até o final da sua vida.
Foi Membro Titular da Academia Fluminense de Medicina, mas nunca me revelou esse aspecto, só fui saber em uma reunião em Nova Friburgo, em agosto de 2007. Não gostava de autopromoção.
Devem estar pensando: um médico com tanta atividade deve ter ficado milionário. Puro engano, levou uma vida simples, trabalhando muito, torcendo pelo Fluminense F.C. e praticando equitação, pois admirava cavalos manga largas. Foi um estóico!
Quando soube que ele estava muito mal, solicitei à família licença para visitá-lo. Fui pensando o que falaria com ele pois, mais velho e com mais conhecimentos médicos do que eu, não conseguiria enganá-lo com falsas palavras.
Ao entrar no seu quarto, ele sorriu discretamente e disse para mim: “Júlio, nós nascemos, crescemos e desaparecemos, eu estou na terceira fase da vida”. Concordei e ficamos em silêncio. Eu pensando, quanto coisa de extraordinário aquele colega havia realizado para a população de nossa região.
Pouco depois disse-lhe: “vou embora, pois não quero cansá-lo”. Ele voltou a sorrir e disse à esposa: “ele é igual ao pai”. Foi o nosso último encontro.
No dia 22 de janeiro de 2015, encontrava-me no final da estrada de São Martinho, quando fui avisado do seu falecimento. Meu espírito entristeceu, mas tive a certeza de que sua alma ouviu aquela voz suave e doce: “Vinde, bendito de meu Pai, tomai posse do Reino que está preparado desde a criação do mundo, porque quando estava doente me visitastes” (Mt 25, 34-36).
Esse colega era conhecido como Dr. Celso Erthal, paradigma a ser seguido por todos os profissionais da área da saúde. Minha homenagem no sexto ano do seu falecimento.
Júlio Marcos Carvalho é médico e já foi vereador do município de Cantagalo.