“Meu caminho é de pedra”

No segundo semestre do ano em que se comemora o bicentenário de emancipação político-administrativa de Cantagalo, as máquinas de pavimentação voltaram ao Centro da cidade e, com o seu quente bafejar, despejaram, sobre os poucos paralelepípedos que ainda restam, mais metros cúbicos do material que se tornou um dos principais símbolos do “progresso”: o asfalto. O futuro chegou, caros munícipes, já o temos à nossa porta!

Como sofro de mania de história, vou puxar o fio do tempo para contextualizar a recente febre de asfalto em terras cantagalenses. Mas, antes, um parêntese. Engana-se quem imagina que o estudo da história permita apenas que se lance o olhar em direção ao passado, tendo o historiador que grudar as retinas, irremediavelmente, nos vestígios daquilo que, em sua plenitude, já se foi, ficando a revirar as sobras dos tempos idos. O profissional da área, ou mesmo um historiador domingueiro (diletante), como eu, não é um balconista de antiquário. A história ensina, sobretudo, a pensar em perspectiva, indo além do que é observado de imediato, projetando as ações humanas no tempo. Ao avaliar como o passado chegou até o presente, o conhecimento histórico propicia uma necessária reflexão sobre os rumos que as coisas tomaram, oportunizando, também, o imprescindível (e muitas vezes negligenciado) trabalho de arquitetar o futuro.

Pois bem, posto isso, vamos ao nosso intento.

Promovendo um recuo à penúltima década do século XVIII, vemos um pequeno arraial começando a expandir-se ao redor de uma edificação central: a Igreja do Santíssimo Sacramento. A paróquia, instituição primal, passa a estabelecer parâmetros societários para os colonos que para cá acorreram. Ao redor do templo católico, poucas ruas de terra batida compõem o cenário de uma incipiente malha urbana.

Um pouco mais de meio século se passou e, na década de 1860, o barão suíço João Tiago Tschudi, em visita a então “cidade” de Cantagalo (já que, em 2 de outubro de 1857, a sede da antiga vila é alçada a essa condição), assinala que a urbis contava, na época, com 1,5 mil habitantes e 120 casas. Um pequeno núcleo urbano cercado por “uma paisagem muito bem cultivada, com numerosos cafezais”.

Na década seguinte, o auge da produção cafeeira entroniza Cantagalo como um dos maiores centros produtores da rubiácea do Brasil, a malha urbana se expande e, como nos informa o grande pesquisador Clélio Erthal, as duas principais vias da cidade recebem calçamento: a Rua Sant’Ana (hoje Avenida Barão de Cantagalo) e a Rua Direita (atual Chapot Prévost). Essas benfeitorias ocorreram por ocasião da gestão do 2º Barão de Cantagalo, Augusto de Souza Brandão, à frente da Câmara Municipal, instituição essa que, então, assumia, também, funções executivas.

Naqueles tempos, era frequente a utilização de pedras irregulares denominadas “pés de moleque” na pavimentação das ruas, porém, pouco a pouco, estas foram sendo substituídas por outro tipo de revestimento lítico. É interessante observar que o calçamento tipo “pé de moleque” foi mantido em vários logradouros de cidades que, hoje, são reconhecidas como tendo grande valor histórico e patrimonial, tais como Paraty e Ouro Preto. Porém, em Cantagalo, os caminhos de pedras irregulares, há décadas, cederam lugar aos paralelepípedos, que, por terem maior regularidade em suas formas, proporcionaram mais comodidade no tráfego e maior eficiência no escoamento das águas pluviais.

Mas, nas últimas décadas do século XX, a princípio de forma tímida e vacilante, um outro tipo de pavimentação foi avançando sobre os tradicionais paralelepípedos, tendo, nos últimos anos, alçado ímpeto e fôlego, tornando-se uma febre – a febre do asfalto. O revestimento asfáltico, ao sepultar as ruas de pedras, não somente apagou uma das características históricas mais marcantes da cidade, como tem protagonizado inúmeros problemas… alguns estão sendo vivenciados de imediato pela população, outros aguardam um futuro próximo, quando mostrarão sua face nefasta.

A cobertura asfáltica, por ser mais cômoda para a rodagem dos automóveis e motocicletas, faz com que a velocidade dos veículos aumente consideravelmente, necessitando de mais quebra-molas para contê-la. Tal comodidade cobra, também, alto preço em termos de aquecimento dos ambientes, pois as superfícies revestidas com asfalto absorvem 98% da radiação solar que recebem, intensificando um fenômeno, antes típico das grandes cidades, que, agora, estamos a desfrutar nas ruas do Centro: a “ilha de calor”.

A cada problema na rede pluvial (que, diga-se de passagem, não foi redimensionada para receber tal tipo de pavimentação), na rede de esgoto (que em determinadas ruas é centenária), ou mesmo no sistema de abastecimento de água, remendos são produzidos no asfalto. Com a sucessão desses necessários procedimentos de manutenção, seremos brindados, para o desfrute dos munícipes e visitantes, com um piso repleto de recortes, que mais parecerá uma colcha de retalhos.

É necessário ressaltar também que a elevação das ruas, em função da deposição da camada asfáltica, gera rebaixos, já que as tampas metálicas e os bueiros não são soerguidos em tempo hábil, e transformam-se em perigosas armadilhas aos pedestres, ciclistas e motociclistas desavisados. Sem contar que a elevação do piso, acrescida à impermeabilidade característica do material originário do petróleo, faz com que o risco de enchentes torne-se maior, exatamente numa época em que os fenômenos climáticos estão se intensificando, tornando as chuvas mais devastadoras.

Caros leitores, o arrazoado dos últimos parágrafos contempla apenas as consequências mais imediatas dessa, digamos, opção infeliz. Pois quando o presente chegar até o futuro próximo, o que assistiremos é o inexorável envelhecimento do asfalto e, em sua senilidade, legaremos às próximas gerações ruas com piso desgastado, corroído e remendado, necessitando, portanto, tragicamente, de mais asfalto na porta, para o recapeamento. 

Quem viver, verá!

*João Bôsco de Paula Bon Cardoso é professor de sociologia e geografia, coordenador de Patrimônio Cultural do Projeto Fazenda São Clemente e um dos coordenadores do Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo.

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