Clélio Erthal*
Depois de termos analisado a mudança de status vivida pela comunidade cantagalense, quando ela deixou de ser simples vila, e já visando o bicentenário da sua emancipação política, assalta-nos, como sempre, o problema da fundação da vila.
Afinal, quem fundou a cidade de Cantagalo?
Muita gente ainda acredita que foi Mão de Luva. Mas Mão de Luva, na verdade, era um simples bandoleiro que, acompanhado de três irmãos e vários comparsas, vivia garimpando clandestinamente na região do Pomba (Zona da Mata, MG), onde morava, sem nenhum propósito de fundar centros urbanos de cunho permanente.
Como a região onde vivia sempre foi pobre de minério, ele e os companheiros resolveram atravessar o Paraíba (Rio Paraíba do Sul) e explorar ouro ilegalmente na Capitania do Rio de Janeiro (talvez por volta de 1780), especialmente nas bacias dos rios Paquequer, Quilombo e Negro, que não eram muito fartas, é verdade, mas tinham seus modestos depósitos aluviais.
Quando foram descobertos pelas autoridades (isto é, pelos militares que, na ocasião, abriam uma picada na margem esquerda do Rio Paraíba do Sul), em abril de 1784, os bandoleiros já operavam nos regatos Lavrinhas e São Pedro (por eles mesmos denominado ‘Córrego do Canta Gallo’), onde montaram um garimpo ilegal; na verdade, um amontoado de toscos barracos, como todo garimpo.
A rigor, não era propósito do grupo criar, no local (mais tarde denominado ‘Triângulo’), um núcleo urbano bem estruturado, e sim explorar a riqueza mineral ali existente e, em seguida, abandoná-lo, em busca de outro lugar mais promissor. Sobretudo em se tratando de ocupação ilegal, como era, sem nenhuma garantia de permanência.
Evacuado o terreno em maio de 1786, presos os contrabandistas e destruídos os barracos, o vice-rei D. Luiz de Vasconcellos, imaginando que o lugar fosse muito rico em ouro, deliberou fundar, ali, uma cidade, que seria (na sua concepção) uma espécie de Vila Rica nas montanhas fluminenses. Nomeou, então, uma comissão para realizar o projeto, composta por um superintendente, um guarda-mor, um examinador das lavras (técnico em mineração), um escrivão, um tesoureiro e vários soldados, carpinteiros e pedreiros, além de um sacerdote para o divino culto e do dinheiro para cobrir as despesas com o empreendimento. Mas isso, é bom deixar bem claro, ocorreu cerca de um ano após a prisão do bando invasor e destruição dos barracos.
Para chefiar a comitiva e comandar a fundação do núcleo projetado, o vice-rei escolheu o desembargador Manoel Pinto da Cunha e Souza, que, na época, ocupava o cargo de Intendente do Ouro na Capitania e considerado pessoa competente e operosa.
Chegando ao local, em 2 de junho de 1787 (já então um carrascal abandonado, só habitado pelo capitão Duarte Malha e alguns soldados da guarnição), o superintendente achou acanhado o lugar para sediar uma cidade destinada a encabeçar tão grande projeto. Pelo que, até pensou em construir o núcleo na margem do Rio Negro, conforme comunicou ao vice-rei em carta de 12 de julho:
“…parece-me muito necessário fazer-se, ali (na margem do rio Negro), o estabelecimento, …porque não é fácil achar entre estas montanhas uma situação mais agradável.”
Não obstante, acabou optando mesmo pelo local antes ocupado pelos bandoleiros, construindo, um pouco mais acima, as obras necessárias. Edificou a Casa do Registro do Ouro, o quartel, as residências e uma modesta capela, que acabou sediando a Paróquia do Santíssimo Sacramento, em breve criada. Vale dizer: o representante da Coroa, depois de certa hesitação, deliberou fundar, no próprio sítio antes ocupado pelos asseclas de Mão de Luva, a raiz da urbe que, 27 anos depois, seria elevada à condição de vila (sede do município) e centro político de todo o antigo Sertão de Macacu.
Sem dúvida, futuramente (depois de vencida a tirania da lenda, é claro), a população cantagalense cultuará a memória do superintendente Manoel da Cunha e Souza como o verdadeiro fundador da cidade.
*Clélio Erthal é desembargador federal aposentado, pesquisador e escritor de livros sobre a história da região.