Obsessões, religiões e jardins

Devo admitir, publicamente, que sou portador de algumas incuráveis obsessões. Uma delas já atravessa quatro décadas da minha existência, portanto cultivo-a desde que me entendo por gente: os jardins e, em especial, o Jardim de Cantagalo.

Os portadores de obsessões são sempre compelidos a alegarem algo que justifique tais estados psicológicos. Aqui não vai ser diferente. Em minha defesa, posso arguir o fato inquestionável dos jardins serem entidades míticas primordiais, arquétipos onipresentes no caminhar da humanidade pelo tempo. Algumas das maiores religiões monoteístas, como o Judaísmo e o Catolicismo, os traduzem como a visão do Paraíso, ou a paisagem primeira que foi presenteada por Deus ao ser humano para que este a cuidasse e a cultivasse. Vem daí uma ideia que acalento no fundo da minha alma, também obsessivamente: o mundo deve ser “jardinizado” e todos os jardins rigorosamente preservados, para o deleite das gerações presentes e futuras.

Esses bucólicos espaços de convivência sempre chamam os homens e mulheres de boa vontade, que se dispõem a aquietar-se em suas sombras, à contemplação e, por que não dizer, à meditação. Uma importante tradição religiosa oriental nos conta que Sidharta Gautama, o Buda, atingiu a iluminação meditando sob uma árvore sagrada. Já a filosofia religiosa Zen assinala que, ao encontrarmos a beleza no mundo natural, a encontraremos também em nós mesmos. Portanto, os jardins são, ou deveriam ser, ambientes nos quais a natureza reorganizada pelas mãos humanas serve à fruição serena, contemplativa e meditativa do belo, para que, a partir dessa experiência estética, possamos aquietar a alma e até mesmo, por que não dizer, alçar patamares mais elevados da existência.

Os jardins são altamente terapêuticos. Neles, o bater do coração segue a suave cadência do rodopio das folhas, ao bailarem no ar, ao sabor da brisa. A convivência se acalma e se entrega àquilo que, na pressa do dia a dia, não habita nossas retinas, nem detém nossa atenção: o operoso trabalho das formigas, o delicado deslizar de peixinhos no espelho d’água, o majestoso voo dos sabiás, o sopro do vento embalando a folhagem…

Locais libertos da insistente presença dessas clausuras ambulantes de metal e vidro – os automóveis; os trajetos dos jardins são projetados não para o trânsito desenfreado e cada vez mais intenso e caótico desses objetos luzidios emissores de gás carbônico, mas para o andar a pé e o calmo vislumbre de árvores, lagos e pássaros. Locais onde as faixas de pedestres, que mantém frequente presença no passeio público, mostram-se completamente dispensáveis, já que suas alamedas são de domínio exclusivo dos caminhantes.

No mundo atual em que a satisfação é sempre atrelada ao consumo, em que a ordem é trabalhar mais, para amealhar mais e consumir ainda mais, os jardins são revolucionários, pois proclamam o nada fazer, o lazer e proveito gratuitos; conclamando a todos, proletários e patrões, à comunhão em torno de uma proposta libertária de convivência harmoniosa e descompromissada, na qual tempo não é dinheiro e sim algo que se deixa escorrer pelas mãos, preguiçosamente e sem culpa.

Um jardim é, sobretudo, o reino das crianças. Local onde os pequenos conquistam finalmente a liberdade do correr sem rumo, do brindar com terra, do sujar a roupa de lama, sem o olhar quase sempre desabonador das zelosas autoridades materna e paterna. 

Por fim, no meu caso particular, um jardim é um convite a voltar a ser criança, pois todos os signos da infância há muito vivida, mas nunca esquecida, estão lá: as árvores e os frutos, os insetos e os pássaros, os brinquedos, as brincadeiras, a ingênua alegria transbordante… Sentado no banco ao lado do coreto, embalado pelo contínuo gotejar da água que escorre languidamente do “toco”, no momento em que uma réstia de sol ofusca a visão, num lampejo, às vezes “vejo” uma charretinha puxada a bode cruzando as alamedas do Jardim de Cantagalo. Dentro dela há um menino de quatro anos, pleno de satisfação, sob o olhar cuidadoso do seu avô Antônio. Às vezes.

*João Bôsco de Paula Bon Cardoso é professor de sociologia e geografia, coordenador de Patrimônio Cultural do Projeto Fazenda São Clemente e um dos coordenadores do Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

COMPARTILHE

Share on facebook
Share on whatsapp
Share on twitter
Share on linkedin
Share on email