Passeio público

No centro das minhas atenções, sempre está o Centro de Cantagalo. Caminho por ele e, em meio aos acenos e cumprimentos verbais – um dos prazeres da vida no interior –, observo os detalhes, a movimentação geral e as mudanças. Mais uma faixa de pedestres aqui, outra calçada revestida com as ondas da praia de Copacabana ali, menos uma casa antiga acolá…

Quando constatei o milagre da multiplicação das faixas de pedestres, lembrei-me da instalação delas em Brasília. Na época, o governo do Distrito Federal contratou artistas de rua para oferecer flores aos motoristas que as respeitassem, realizando um necessário trabalho pedagógico. Sem isso, o efeito das faixas é, muita das vezes, ornamental. Acho, também, que alguns condutores não as respeitam temendo que motoristas desavisados colidam nas traseiras dos seus veículos.

Coloco-me na extremidade de uma delas e nada acontece, o trânsito flui “normalmente”. Espero a minha vez de atravessar a Avenida Barão de Cantagalo, quando o fluxo de automóveis cessa. Cruzando a Praça da Matriz, recentemente modificada, o que me prende a atenção não são os “coqueiros” acondicionados em avantajados vasos, e sim o enorme painel que retrata a fachada do finado Solar dos Ventura. Lembro-me que quando o imóvel histórico estava para ruir, reunimos, sob a liderança do então vereador Henrique Bon, centenas de assinaturas, em vão, pela não derrubada. Belíssimo painel! Agora, o desafio é que a prometida reconstrução da fachada fique à altura da qualidade da reprodução em outdoor.

“Volto ao jardim, com a certeza que devo chorar”… Ao adentrar o nosso “mais belo cartão postal”, atravessando o pórtico que ladeia o Fórum, não há tema musical mais apropriado; e passo a cantarolar o clássico de Cartola.

Aproximo-me, sem pressa, da “casinha de Papai Noel”, onde, em pleno mês de junho, por sobre a porta envidraçada, descansa, meio tímida, pois deslocada no tempo, uma guirlanda saudosa do Natal. Ano após ano, esta pequena habitação fica a figurar destoante à espera do inquilino que só chega para sua curta temporada de dezembro.

Sempre gosto de atualizar as minhas retinas em relação ao coreto, não me canso de admirá-lo, mesmo na fase de penúria em que se encontra. Desde o fundo da infância, ele sempre teve em mim um companheiro, na alegria e na tristeza. Deslizando olhar nos seus detalhes, contraponho-os às imagens de fotos antigas que tenho gravadas na memória, e constato, não sem uma pontada de pesar, o empobrecimento de suas características originais. Por conta de restaurações pouco criteriosas, a antiga sofisticação da cobertura de zinco, dos vitrais e do candelabro desapareceram. A imitação de galhos retorcidos da sua estrutura encontra-se avariada; os pequenos animais retratados nela, por conta de pintura descuidada, transformaram-se em caricaturas do que antes eram; e o piso hidráulico se apresenta como tendo sofrido abalos sísmicos.

Alço o patamar superior do coreto, galgando pausadamente a escada de mármore encardido. Meu campo de visão lentamente se amplia. Agora, tenho um olhar panorâmico de alguns canteiros onde impera a confusão de arbustos e arvoredos, em competição por uma réstia de sol. Por décadas, o plantio desordenado ofusca o projeto paisagístico original. Mas me alivia notar que, apesar disso, as características mais marcantes da escola do bom e velho Auguste François Marie Glaziou continuam resistindo, já que, felizmente, até hoje, o traçado sinuoso dos canteiros e alamedas continua intacto, e a ideia primordial da disposição das massas vegetais de maior porte ainda se pronuncia, apesar dos plantios aleatórios, comemorativos e festivos de inúmeras espécies sem nada se considerar em termos de gestão e, apesar também do recente corte da mangueira secular (talvez por justificáveis motivos de segurança dos transeuntes), reduzindo seu largo tronco a uma melancólica mesa, a servir nada a comensal algum. Como consequência desse ato, a próxima espécie a perecer por ali talvez seja a tradicional grama pelo de urso, que viceja adaptada ao sombreamento.

Ao apoiar meu antebraço no guarda-corpo lateral, mergulho o olhar nas águas lodacentas do repuxo, onde nadam, meio claudicantes, alguns peixes acometidos por estranhas mutações; alivia-me notar que os mais afetados pelo mal, como um branquinho que desenvolveu uma corcova e assustava as crianças na tentativa frustrada de equilibrar-se no nado, foram retirados.

Despeço-me momentaneamente do jardim, caminhando em direção ao pórtico em frente ao Banco do Brasil. 

A visão de outro tipo de banco, os de sentar, do Senadinho, na indecisão de se reconhecerem como brancos ou alaranjados, fica impressa nas minhas retinas já fatigadas. Uma manilha de borda torta e torneira improvisada fazem às vezes de tanque. A força das raízes soergue, inclina e desalinha a mureta lateral. Apertando o passo, cruzo a Avenida Leontino Felippe Richa por sobre os paralelepípedos sepultados pelo asfalto. De súbito, toca na minha cabeça o último trecho de ‘As rosas não falam’: “Devias vir para ver os meus olhos tristonhos, e quem sabe sonhavas meus sonhos, por fim”.

*João Bôsco de Paula Bon Cardoso é professor de sociologia e geografia, coordenador de Patrimônio Cultural do Projeto Fazenda São Clemente e um dos coordenadores do Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo.

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