“Adeus professora”, por Dr Júlio Carvalho

Chego à residência, e minha esposa me comunica o falecimento de Lucinha. Fico parado como lutador que, atingido por um possante soco, procura as cordas do rinque para se amparar e não cair. Algum parentesco? Não.

Nem sempre os laços familiares são os mais fortes, as gerações vão se sucedendo e os parentes vão ficando mais distante, alguns nem conhecemos. No interior, tudo é bem diferente. As famílias se conhecem e são amigas durante várias gerações. É o que aconteceu com meus pais e os avós maternos da Lucinha, senhor Leopoldo Goulart e senhora Hilda de Azevedo Goulart. Quando este senhor faleceu, foram dias de tristeza na casa de meus pais. Era criança e me lembro do meu pai exclamando: “coitado do Leopoldo, sou médico e não pude fazer nada por ele“. Minha mãe, chorando, dizia: “coitada da Hilda, viúva e cheia de filhos para criar“.

Lucinha participava também na educação catequética, formando e dando catequese a muitos crismandos
Lucinha participava também na educação catequética, formando e dando catequese a muitos crismandos

Cresci amigo de todos os descendentes desse casal, dos filhos e, depois, dos netos. Marilda, casada com o senhor Sady Farah, foi mãe de duas lindas e inteligentes meninas: Maria Elizabeth e Maria Lúcia, mais conhecidas como Bebete e Lucinha. A primeira já falecida, vítima de violento A.V.E. A segunda, no dia 11 de setembro, partiu ao encontro de Deus, após cirurgia cardíaca longa, com ocorrência de complicações no pós-operatório.

Enquanto Bebete era mais tranquila, Lucinha era mais participativa desde menina. Gostava de teatro na época de estudante e de escola de samba, desfilando pela verde e branca.

Se não bastasse a amizade com a família Goulart, Lucinha casou-se com Mazinho, filho do paraibano Jório Noronha, outro amigo de meu pai durante toda vida. Assim, os laços de amizade entre nós se tornaram maiores.

Vieram as gestações e fui o escolhido para realizar os pré-natais. Três filhos e três cesarianas, três meninos robustos. Na segunda cesariana o menino nasceu em sofrimento, sendo recuperado pelo anestesista e pediatra, nosso saudoso amigo João Guzzo. Mesmo recuperado, gemia muito e permanecia um pouco cianótico, sendo colocado na incubadora, com calor e oxigênio, pela manhã.

Maria Lúcia Farah Noronha participava ativamente do Grupo de Oração Bom Pastor
Maria Lúcia Farah Noronha participava ativamente do Grupo de Oração Bom Pastor

Com receio que ele viesse a falecer como pagão, resolvi batizá-lo no hospital, dando-lhe o nome de João. Passei o dia pedindo que João XXIII intercedesse junto a Deus para que a criança não morresse. No final da tarde retornei ao hospital e, para minha grande alegria, João estava corado e sugando bem. Ao ser batizado na Igreja, sua mãe acrescentou Carlos ao nome, passando a ser João Carlos.

Sempre acreditei que um dia o Papa João XXIII seria canonizado devido a sua pureza e bondade. No dia de sua canonização, chefiados pelo Pe. Alexandre José Albuquerque, uma comitiva de cerca de 25 pessoas estava em Roma. Entre os cantagalenses: Lucinha, Ângela Cardoso, Eny Baptista, Celeste Naegele, Letícia e eu.

Alegria pura, com católicos do mundo todo, bandeiras de todas as nacionalidades, irmanadas como um só povo de Deus. Lucinha e Ângela fotografavam tudo, fazendo um verdadeiro documentário.

Ao saber da triste notícia do seu falecimento, todos esses pensamentos surgiram em minha mente, como num filme que se assiste. Lucinha, como sempre foi conhecida, teve participação ativa na comunidade cantagalense.

A professora Maria Lúcia Farah Noronha ocupou, mais de uma vez, o cargo de Secretária Municipal de Educação de Cantagalo
A professora Maria Lúcia Farah Noronha ocupou, mais de uma vez, o cargo de Secretária Municipal de Educação de Cantagalo

Professora, ajudou a educar centenas de cantagalenses. Por duas ou três vezes ocupou o cargo de Secretária Municipal de Educação, sempre preocupada em promover eventos atualizando suas colegas de magistério.

Certa vez, na cidade do Rio de Janeiro, por ocasião de um encontro da turma de médicos formados em 1961, na Faculdade de Ciências Médicas, conheci a esposa de um colega e amigo, Prof. Ayrton Pires Brandão. Durante nossa conversa, essa senhora, que também tinha o nome de Maria Lúcia, ocupando algum cargo na Secretaria Estadual de Educação, ao saber que eu era de Cantagalo, perguntou-me se eu conhecia Maria Lúcia, Secretária de Educação de Cantagalo. A seguir, teceu múltiplos elogios a nossa conterrânea, pelo trabalho que a mesma realizava em nosso município e também junto à Secretaria Estadual de Educação. Voltei do Rio feliz da vida com a notícia.

Através do NECCA Jovens, Lucinha evangelizou e testemunhou o amor de Deus a muitos jovens de Cantagalo e da região
Através do NECCA Jovens, Lucinha evangelizou e testemunhou o amor de Deus a muitos jovens de Cantagalo e da região

Não foi somente na área da educação que Lucinha colaborou e se destacou. Toda iniciativa que visasse o bem de Cantagalo, ela aparecia como voluntária e cheia de entusiasmo. Na década de 70, quando ocupava a provedoria do Hospital de Cantagalo, senti a necessidade da construção de um novo prédio, com cerca de 2.000 m² de área construída, financiado pela Caixa Econômica Federal. Iniciamos a realização de eventos na sede do Cantagalo E.C. Lucinha, ao tomar conhecimento, me procurou, colocando toda estrutura humana da S. M. de Educação para colaborar com os eventos. Vendia mesas e ingressos para os bailes, ajudava na organização e decoração das mesas. Eu dizia: “você é a madrinha do hospital“. Um detalhe, éramos de correntes políticas opostas, mas isso não importava.

Lucinha teve participação marcante, também, nas atividades da Paróquia do Santíssimo Sacramento de Cantagalo. Foi catequista durante muitos anos, fez inúmeros e belos pronunciamentos a pedido de diversos padres, sempre alicerçados em passagens do Evangelho. Organizou vários encontros do NECCA Jovem. Era incansável. Excessivamente emotiva, em vários pronunciamentos chegava as lágrimas, ficando com a voz embargada.

Na última grande obra de restauração da nossa igreja, comandada pelo Padre Marcelo Campos da Silva, ela estava firme e forte na comissão. Nas reuniões mensais, quando éramos assaltados pelo temor diante de tão grande empreitada, ela era a voz do entusiasmo e da esperança.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.
Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

Durante quatro anos, ocupou uma das cadeiras da Câmara de Vereadores de Cantagalo. Seus projetos eram sempre alicerçados em bom senso, sensibilidade e cultura. Um deles estabelecia o tombamento de prédios históricos de nossa cidade. Creio que foi derrubado no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, pois os interesses financeiros foram mais fortes que os históricos e culturais.

Na Câmara, manteve a sua emotividade. Certa vez, em um debate comigo, chegou às lágrimas. Fiquei profundamente arrependido, todavia, isso fazia parte do sistema democrático. O embate fora só em plenário, terminava com o fim da sessão.

Muito mais teria para escrever sobre a vida riquíssima da Prof.ª. Maria Lúcia Farah Noronha, todavia, tenho uma certeza religiosa: aquela que em vida semeou o bem, na eternidade colherá as flores e os frutos.

Que Deus console seus entes queridos, pois sua alma já se encontra entre os benditos do Pai.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

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