“Belíssima História”, por Dr Júlio Carvalho

O mês de abril serve de marco para uma belíssima história do nosso município.

Final do século XIX. Apesar das campanhas abolicionistas, a escravidão dos infelizes afro-brasileiros continuava existindo no Brasil, mancha terrível da nossa história, mecanismo desumano que permitia a exploração da raça negra, tratada não como ser humano, mas como objeto de trabalho e de lucro para os barões e proprietários de terras.

A vida média dos escravos era pequena. Em um encontro patrocinado pelo SUS, a palestrante disse que não passava dos 45 anos. Nesse momento, um querido amigo, companheiro de longas lutas na saúde, afro-brasileiro de grande valor, interrompeu a palestra dizendo: “Então fui mais feliz, pois já passei dos 45 anos”, o que foi motivo de muito riso.

Apesar dos maus tratos, da alimentação rudimentar e da vida insalubre, alguns mais resistentes chegavam à velhice. Quando a força física exauria, alguns proprietários rurais inescrupulosos mandavam conduzir esses idosos à periferia das cidades, onde eram abandonados, permanecendo famintos e expostos às intempéries, passando a viver da caridade pública.

Hospital de Cantagalo
Hospital de Cantagalo

Em novembro de 1873, existiam em Cantagalo duas lojas maçônicas: Confraternidade Beneficente de Cantagalo e Ceres. A primeira, que existe até hoje, funcionando na rua Barão de Cantagalo, preocupada com a triste situação acima descrita, resolveu criar uma Casa de Caridade que pudesse abrigar esses infelizes abandonados, alguns doentes, necessitando de tratamento médico. Era, todavia, uma tarefa gigantesca, que dependeria de somas elevadas de dinheiro, pois partiriam do ponto zero.

Aprovada a ideia, foi criada uma diretoria específica, assim formada: Presidente – Dr. Antônio Augusto Pereira Lima; Secretário – Sr. Hemitério José Pereira Guimarães; e Tesoureiro – Sr. Antônio Borges Delgado.

A loja Ceres, imediatamente, aderiu ao projeto, criando, também, uma comissão para auxiliar nos trabalhos, constituída por: Sr. Guilherme Sawerbronn; Dr. Augusto de Souza Brandão; e Sr. Bernardino José Borges.

O passo seguinte foi a criação de quatro comissões objetivando angariar os recursos financeiros necessários à concretização do projeto, que atuariam em Cantagalo, Santa Rita, Carmo e Duas Barras. Todas trabalharam com grande sucesso, sendo a ideia bem recebida pelos que foram procurados a colaborar.

Levantados os recursos financeiros, cabia a comissão escolher o sítio mais adequado para a materialização do sonho. Cinco locais foram estudados minuciosamente por um grupo de engenheiros, todos trabalharam a custo zero, movidos pelo desejo de colaborar. Na pesquisa feita, encontrei os seguintes nomes: Dr. A. Steinack, Dr. Mariano de Vasconcellos (engenheiro da província do RJ), Dr.Beauclair e Dr. Pereira Lima.

O local escolhido foi a Chácara Queimada, de propriedade do Sr. Felippe Clair, afastada da cidade, em local tranquilo, com água própria e com uma construção que poderia ser melhorada e ampliada, facilitando o início dos trabalhos da instituição assistencial. Foi comprada uma área de 27.509,91 m², com a escritura passada em 09 de julho de 1874.

Finalmente chegou o grande dia, em 24 de abril de 1875, às 13h30. Era inaugurada a Casa de Caridade de Cantagalo (“com efeito à 1, ½ hora da tarde do dia 24 de abril do corrente, inaugurou-se a útil e pia instituição – em acto solemne e esplendoroso – com a assistência de quase toda a população do lugar”, como consta do documento original).

Depois de lido o relatório da comissão responsável pela execução do extraordinário trabalho de criação da instituição filantrópica, foram ouvidos vários oradores. Em nome da comissão inauguradora falou o Dr. Theodoreto Carlos de Faria Souto, sendo seu discurso uma demonstração de profundos conhecimentos filosóficos, digno de figurar em qualquer antologia da língua portuguesa.

Em nome da classe médica falou o Dr. Herculano José de Oliveira Mafra. Suas palavras foram centradas sobre a importância da caridade, começando e terminando por citar o Monsenhor Felicíssimo: “Dai, pois, ao pobre para que Deus vo-lo torne. Se quereis fiança, o pobre vos apresentará seus andrajos; quanto mais rotos estiverem, mais seguros ficareis de que tudo que lhe entregardes vos será restituído”.

A solenidade foi encerrada com muitos fogos de artifícios, depois de um repertório de músicas. “Serviu-se, então, um abundante copo d’água, onde se levantaram entusiásticos brindes”.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.
Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

São 146 anos de fundação da nossa querida Casa de Caridade de Cantagalo, quase um século e meio de existência. Talvez seja o hospital mais antigo de nossa região. Creio que seus fundadores jamais poderiam imaginar os extraordinários e importantes trabalhos que seriam ali realizados. Apesar das dificuldades financeiras sempre vividas, como ocorre com todas as santas casas brasileiras, nosso hospital continua de pé prestando assistência médica a todos que o procuram, enquanto outros já encerraram suas atividades.

Nesses 146 anos de existência prefiro não citar nomes para não cometer injustiças, pois alguns poderiam ser esquecidos. Uma legião de benfeitores passou pela diretoria executiva, e pelos conselhos deliberativo e fiscal, trabalhando graciosamente, em reuniões noturnas depois de dias de exaustivo trabalho, todos sem qualquer remuneração, mas repletos de entusiasmo, amor e boa vontade, que constituíram sempre os sólidos alicerces dessa santa instituição.

Ao mesmo tempo, mais de uma centena de médicos, paramédicos, enfermeiras, auxiliares de enfermagem e funcionários de vários setores trabalharam diuturnamente em benefício dos que necessitaram de assistência médica na Casa de Caridade de Cantagalo.

O autor desta homenagem à instituição recebeu a graça de trocar cinco anos de serviços no H. U. Pedro Ernesto, como médico efetivo do antigo estado da Guanabara, por cinquenta anos de dedicação à Casa de Caridade de Cantagalo. Centenas de vezes, de perto, partilhou o choro de saudade, quando os entes queridos partiam. Todavia, milhares de vezes ouviu, com alegria, o choro forte dos recém-nascidos anunciando que em cada criança nascida a humanidade se renova graças à força do Criador.

Nesse meio século, parodiando Roberto Carlos, posso repetir: “Se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi”.

Que Deus proteja sempre essa santa instituição que, um dia, a maçonaria, em Cantagalo, foi inspirada e teve a coragem de criar, e que com muito amor e trabalho permaneça lutando em benefício da humanidade sofredora através dos séculos vindouros.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

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