“Missão Difícil”, por Dr Júlio Carvalho

Tenho um amigo fraterno há 74 anos, desde os bancos do antigo Ginásio Euclides da Cunha, que depois de realizar um belo passeio pela Praça João XXIII, descrevendo os monumentos, o correto e outros detalhes da nossa praça, passou para mim uma missão difícil: escrever sobre o Dr. Mafra. Afinal, “amigo é para essas coisas”.

No período em que trabalhei no Hospital Universitário Pedro Ernesto, no bairro de Vila Isabel, passei um ano e meio na 3ª Clínica Cirúrgica, chefiada por uma figura humana extraordinária, exímio e elegante cirurgião, conhecedor profundo dos problemas sociais e nacionais, que não era um chefe, mas um amigo, um professor e um pai para os colegas do seu serviço. Seu nome era Dr. Júlio Sanderson, mineiro de Aiuruoca.

Cidadão de grande cultura geral, Dr. Júlio Sanderson escreveu alguns livros, entre eles um com o título HERÓIS DE CURAR, no qual descreve vários médicos benfeitores da humanidade. No início do livro, relata que a humanidade se preocupa muito com os heróis militares, com os feitos de guerras e de batalhas, erigindo monumentos para os chefes militares e jamais homenageando os médicos e os cientistas. Afirma o autor que os que participam de guerras são heróis de matar, enquanto os cientistas e médicos são heróis de curar, de salvar.

Baseado nesse conceito, nossa querida terra de Cantagalo foi felicíssima preferindo homenagear os heróis da paz, com monumentos a um dos maiores escritores de nossa língua portuguesa, Euclides da Cunha, um maestro, Joaquim Naegele, um professor, Manoel Vieira Baptista, e um médico, Dr. Herculano Mafra, todos heróis da paz.

Sendo médico, o Dr. Herculano Mafra foi um herói de curar, no conceito do meu xará e mestre, acreditando que o seu monumento tenha sido o primeiro inaugurado em nossa praça e o que está em pedestal mais elevado.

Durante muitos anos, foi um monumento inominado e várias pessoas não sabiam quem era o homenageado: com os cabelos um tanto quanto longos, alguns pensavam que fosse algum poeta, enquanto outros consideravam tratar-se de um compositor de músicas clássicas.

Na década de 50, o cantagalense Américo Marques da Silva, depois de trabalhar vários anos na capital paulista, retornou com a família para Cantagalo e teve a iniciativa de fazer uma subscrição popular providenciando uma placa indicativa com o nome do homenageado no monumento.

Poucos dados históricos possuo do Dr. Herculano Mafra. Sei que era mineiro de São João del Rei, cujo nome completo era Herculano José de Oliveira Mafra, vindo a residir em nossa cidade, onde atuou como médico, falecendo em 1914. Os mais antigos contavam que era homem de grande cultura, amante de uma boa leitura, o que fazia nos bancos do nosso jardim, levando sempre no bolso do paletó umas folhas do receituário, uma caneta e um termômetro. Quando sua leitura era interrompida por alguém que se queixava de algum padecimento, ali mesmo era examinado e recebia uma receita para seus males. Nada cobrando, por isso era cognominado Pai dos Pobres.

Era maçom, membro da loja Confraternidade Beneficente, sendo um dos idealizadores e fundadores da Casa de Caridade de Cantagalo.

Guardo com todo carinho um rico documento sobre a criação e inauguração da Casa de Caridade de Cantagalo, datado de 24 de abril de 1875, que recebi do Sr. Diavolasse de Oliveira Reis (Sr. Zinho Barbeiro), que durante muitos anos foi um baluarte como Provedor da centenária instituição hospitalar. Entre vários discursos no dia da inauguração, existe um proferido pelo médico Dr. Herculano Mafra, que a seguir transcrevo:

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“Minhas senhoras e meus senhores.

Dai, pois, ao pobre para que Deus vo-lo torne. Se quereis fiança, o pobre vos apresentará seus andrajos; quanto mais rotos estiverem, mais seguros ficareis de que tudo que lhe entregardes vos será restituído. (Monsenhor Felicíssimo).

Repetindo estas palavras, que encerram a mais sublime e grandiosa máxima, proferida por um sacerdote que honra o clero brasileiro, e que, qual outro S. Vicente de Paulo, anda de porta em porta arrecadando o óbolo do pobre e do enfermo, compreendendo que um verdadeiro sentimento de prazer deve pairar em todos nossos corações, e que nossas consciências nos dirão: ‘como é doce o cumprimento da mais sublime das virtudes – a caridade – esse rapto da alma’, como disse Santo Agostinho, que nos eleva ao gozo de Deus, de nós mesmos e do próximo por amor de Deus!

Senhores. Por sem dúvida sou, dentre os meus colegas, que tão distintamente preenchem os árduos deveres que lhes impõe a profissão médica, o mais incompetente para dirigir-vos a palavra em tão solene ato.

Se, porém, eu conheço a minha incompetência, não posso furtar-me ao dever, como membro, embora o mais obscuro dessa classe, de representá-la, dirigindo breves palavras em manifestação dos sentimentos de prazer, que, ocupando neste momento toda a Minh ‘alma, são seguramente compartilhados por todos os distintos colegas que habitam este município.

A inauguração da Casa de Caridade nesta cidade é um acontecimento de um alcance incomensurável.

Em uma época, como a que atravessamos, em que se procura inocular no ânimo dos povos a teocracia religiosa, não podia a maçonaria de Cantagalo proceder mais acertadamente do que levando avante a grandiosa idea de fundação de um asilo para os pobres, respondendo a essa insólita guerra que poderia abalar alguns espíritos, mas não os dos habitantes de Cantagalo que diriam: ‘A esforços da Loja Confraternidade Beneficente, temos um refúgio seguro em nossas infelicidades!…’

Este fato, pois, senhores, é um argumento irrespondível contra aqueles que, guerreando a maçonaria, propalam que esta instituição vai de encontro as doutrinas escritas no livro de ouro dos Evangelistas!

Não quero historiar as fases por que passou a ideia da fundação de uma casa de caridade entre nós; os tentames mais ou menos afortunados para a sua realização; me permitirão, porém, que, fazendo a devida justiça a todos os habitantes deste município, dê neste momento o solene testamento público, de que, se apareceram iniciadores da ideia, ninguém foi criador; a caridade, o mais sublime de todos os sentimentos do coração humano, constitui um dos mais brilhantes predicados do povo desta localidade; para todos era a caridade a nuvem que guiou os israelitas à terra da promissão; ou como disse Chateaubriand, o poço da abundância que o cristianismo colocou nos desertos da vida.

Inata no coração de todos, despertada por várias vezes sem a felicidade de irradiação no mundo externo sob a forma do templo que hoje celebramos, ultimamente, graças aos esforços do meu filantropo amigo e colega Dr. Belmonte de Andrade, que, em bem elaborados artigos, que correram impressos nas colunas do Correio de Cantagalo, soube infundir o mais santo entusiasmo pela criação da Casa de Caridade – a loja Confraternidade Beneficente, com a maior isenção e cheia do mais meritório ardor, tomou sobre seus ombros a santa tarefa, e hoje, cheia de júbilo, vê satisfeita sua árdua, mas benemérita missão!

Deus, maçons, vos restituirá com usura o que haveis entregado aos pobres e infelizes…

A classe médica, melhor do que outra qualquer, compreende as vantagens de tão importante quão filantrópico estabelecimento, e pela sua parte envidará todos os seus esforços em prol do seu engrandecimento, prestando toda a coadjuvação que estiver em suas forças, e penso, assim me expressando, ser o interprete dos sentimentos que animam a todos meus distintos colegas.

Terminando, senhores, congratulo-me com todos os habitantes deste importante e rico município, que deu, não um passo, mas um salto na brilhante carreira do seu porvir! E se quereis fianças: ‘Os pobres vos apresentarão seus andrajos, e quanto mais rotos, mais seguros ficareis de que tudo que lhes entregardes vos será restituído.'”

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Creio que o conteúdo desse discurso é o espelho do espírito desse médico traduzindo toda bondade emanada do seu coração em benefício da humanidade sofredora, levando os cantagalenses a imortalizá-lo no bronze existente na Praça João XXIII, numa homenagem das mais justas a esse verdadeiro HERÓI DE CURAR.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.