“Brava Gente Brasileira”, por Dr Júlio Carvalho

Consciência negra

Consciência negra

Uma das estrofes do Hino da Independência começa com esta frase: “Brava gente brasileira”; por sinal, é um hino de letra belíssima, de autoria do jornalista e político Evaristo da Veiga, falecido precocemente aos 44 anos. Quando ouço essa frase desse hino, considero que ela deveria ser dedicada aos nossos patrícios negros, descendentes dos africanos prisioneiros, trazidos dos tristes portos do litoral africano.

Portugal, desde o início da nossa colonização, ou exploração, sentiu que seria impossível, com sua pequena população, ocupar todo o vasto território brasileiro, não havendo braços suficientes para realizar todo trabalho necessário. Não era só a maior colônia na América do Sul, existiam, também, as colônias africanas tanto no litoral do Atlântico como do oceano Índico, sem citar Macau, na China.

Quando o açúcar se valorizou na Europa e em outros locais do mundo e a colônia brasileira penetrou no Ciclo da Cana de Açúcar, tornou-se necessário um número gigantesco de braços para o trabalho nas lavouras e nos engenhos, principalmente do nordeste. Na época, a solução mais fácil foi apelar para o regime escravagista.

Os primeiros escravizados foram os indígenas, todavia, por sua cultura, não se adaptavam ao trabalho; conhecedores das florestas, fugiam, outros contraiam doenças trazidas pelos portugueses e morriam facilmente, como acontecia com o sarampo, a varíola e outras doenças para as quais não possuíam imunidade. Ao mesmo tempo, eram protegidos pelos jesuítas, mais preocupados com a catequese e a salvação das almas.

A via mais fácil era a escravidão de africanos negros, que já acontecia em alguns países do velho mundo. Começando o tráfico de escravos em meados do século XVI e permanecendo até o século XIX, foram retirados da África 11 a 12 milhões de seres humanos para o trabalho escravo na Europa e nas três Américas. O Brasil, responsável pelo destino de 4 milhões de escravos, foi o país que mais lançou mão desse desumano sistema.

Os escravos eram procedentes de vários pontos do litoral africano do Atlântico e, mais tarde, também de Moçambique. Consta que 75% tinham origem em Angola, colônia portuguesa.

No princípio, os grupos populacionais africanos lutavam entre si e os vencidos eram negociados com os traficantes; mais tarde, os próprios europeus prendiam os africanos e os negociavam com os traficantes. Estes africanos eram embarcados nos navios negreiros ou tumbeiros, assim chamados porque cerca de 25% da carga humana morria nas viagens, vítimas de doenças, de violência ou de inanição, uma vez que a alimentação era deficiente, consistindo em feijão, farinha e carne seca uma vez ao dia.

Os africanos eram colocados nos porões dos navios, mal ventilados, mal iluminados e com baixa altura, o que obrigava que permanecessem sentados ou deitados; os que se rebelavam eram levados ao convés e espancados.

A viagem até o Brasil levava de 25 a 40 dias, dependendo do porto de destino (Recife, Salvador ou Rio de Janeiro). Os que morriam eram lançados ao mar. Desembarcados, eram expostos aos compradores, tomando os mais diversos destinos. As famílias negras eram desfeitas No ciclo da cana-de-açúcar, a maioria era vendida no nordeste; com o ciclo do ouro, o destino dos infelizes africanos passou a ser as minas de ouro. A minoria era destinada aos serviços domésticos nas fazendas ou nas cidades.

Alguns escravos fugiam; eram perseguidos por cães da raça fila e pelos capatazes e, uma vez capturados, eram espancados violentamente na presença dos outros escravos como advertência aos que pensassem em fugir.

Outros mais corajosos lideravam rebeliões contra os senhores de escravos. No estado do Rio de Janeiro, em Vassouras, o escravo Manoel Congo liderou uma rebelião que deu muito trabalho. Ao ser vencido, Manuel Congo foi julgado pela justiça local e condenado à morte por um júri constituído por senhores de escravos.

Tal episódio motivou um trabalho literário do meu saudoso amigo Dr. Alaor E. Scisínio, advogado negro, professor em faculdades do Rio de Janeiro, que entre inúmeros trabalhos publicados também nos deixou Escravidão e a saga de Manuel Congo.

Nas fazendas e nas minas de ouro, os escravos trabalhavam das 5h às 19h, com alimentação precária; à noite, eram trancados nas senzalas, mal ventiladas, dormindo quase sempre no chão frio e úmido.

Tal sistema de vida determinava que o escravo tivesse em média 40 anos de vida. Este assunto me lembra um fato pitoresco ocorrido no CIEP Janjão, durante um simpósio realizado pelo SUS. Uma senhora do Rio de Janeiro falava sobre a vida dos escravos no Brasil. Ao citar que a vida média era de 38 a 40 anos, o meu amigo e companheiro de trabalho, Dr. Esdras Gil, que estava sentado ao meu lado, exclamou em voz alta; “Então eu tive mais sorte”. A frase do professor Gil determinou muitas risadas, inclusive da palestrante.

No Brasil, a abolição ocorreu gota-a-gota. Em 1850, a Lei Euzébio de Queiroz proibiu o tráfico de escravos, todavia o mesmo continuou através do contrabando, com desembarque em portos clandestinos, até que a marinha inglesa passou a patrulhar os mares, tornando tudo mais difícil, chegando ao fim.

A partir dessa época, o valor dos escravos aumentou, surgindo em algumas fazendas hospitais para escravos, com assistência médica, não por piedade dos senhores escravagistas, mas pelo aumento de preço dos escravos.

Em 28 de setembro de 1871, o gabinete imperial, chefiado pelo Visconde de Rio Branco, aprova e assina a Lei do Ventre Livre. Os filhos dos escravos, nascidos a partir daquela data, eram livres, não seriam mais escravos.

Em 1885, surge a Lei dos Sexagenários; o escravo que chegasse aos 60 anos seria colocado em liberdade. Alguns continuavam nas fazendas cuidando das hortas, das galinhas, etc. Outros eram levados e soltos nas cidades, passando a viver da caridade, como pedintes e moradores de rua. O que levou as lojas Maçônicas Ceres e Confraternidade Beneficente de Cantagalo a criarem a Casa de Caridade de Cantagalo, enquanto a Igreja Católica, através do Apostolado da Oração do Sagrado Coração de Jesus, fundava o Asilo da Velhice Desamparada, hoje, Asilo Visconde Pinheiro.

Finalmente, em 13 de maio de 1888, decorrente da campanha abolicionista cada vez mais intensa, a Princesa Isabel assina a Lei Áurea determinando o fim da escravidão no Brasil.

Alguns escravos continuaram nas fazendas, vivendo como meeiros; outros foram para os centros urbanos; todavia, sem instrução, passam a realizar os trabalhos piores e mais pesados, vivendo em regiões da periferia urbana. Porém, jamais deixando de lutar por seus direitos, nossos patrícios negros vão galgando seus lutares dentro da nossa sociedade.

Na década de 70, trabalhei dez anos no Colégio Maria Zulmira Torres como médico e lecionando Biologia e Higiene para o Curso Normal. Observava, com tristeza, que alunos negros eram uma pequena minoria. Hoje, meio século depois, observo, com grande satisfação, que a maioria que caminha para o mesmo colégio é formada por descendentes de afro-brasileiros. É parte da conquista social obtida com muito esforço e sacrifício.

Dia chegará em que os postos chaves serão distribuídos em igualdade entre brasileiros de todas as tonalidades, pois a diferença está apenas na cor de nossa pele. Quando isso ocorrer poderemos dizer com muito orgulho:

O Brasil, realmente, é um país democrático!”.

 

Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo
Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo

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