“Cantagalo: datas históricas”, por Celso Frauches

Mapa das Novas Minas do Canta Gallo (Acervo BN)

Mapa das Novas Minas do Canta Gallo (Acervo BN)

Foto da capa: Mapa das Novas Minas do Canta Gallo (Acervo BN)

A história é escrita pelos vencedores.
(George Orwel – 1903/1950)

Cantagalo deve comemorar, neste fim de semana, várias datas históricas. Oficialmente, parece que vai se restringir a duas datas: 1814 – criação do município de São Pedro de Canta Gallo; 1857 – elevação da vila de São Pedro de Canta Gallo à categoria de cidade, Cantagalo. Mas Cantagalo tem outras datas históricas, registradas nas pesquisas de Sebastião de Carvalho e do pesquisador Rodrigo Leonardo de Souza Oliveira, em sua dissertação de mestrado na Universidade Federal de Juiz de Fora, MG.

A partir dessas pesquisas, o Instituto Mão de Luva desenvolveu um estudo detalhado dessas duas obras históricas, ao lado das do jornalista, escritor, historiador e romancista Acácio Ferreira Dias (Terra de Cantagalo – Subsídio para a história do município de Cantagalo, 2ª edição, vols. I e II. Rio Bonito, RJ: Artes Gráficas Cantagalo, 1979, e O Mão de Luva – fundador de Cantagalo. Niterói: Imprensa Oficial, 1953) e de outras fontes de informação, como artigos científicos e não acadêmicos.

Dessas pesquisas, pude encontrar outras datas, além das duas sempre comemoradas: a criação do município e a elevação da vila de São Pedro à cidade de Cantagalo. Os exemplos vão em seguida.

1760 – Início da ocupação de uma área de terras, situada nos “Certões occupados por índios bravos”, pelo garimpeiro Manuel Henriques, o Mão de Luva, possivelmente com cerca de vinte anos de idade, seus três irmãos, um enteado, parceiros de garimpagem, vinte escravos e alguns libertos. Mão de Luva não era “bandoleiro” e nem “salteador”. Esse erro não se justifica. Ele era garimpeiro, assim como os seus “comparsas” como foi tratado no seriado da TV Globo.

Manuel Henriques era natural da freguesia de Ouro Branco, na Capitania de Minas Gerais. Ali ele foi batizado e casou-se em 1775 (Processo matrimonial de Manoel Henriques e Maria de Sousa. 1º de janeiro de 1775). Nessa oportunidade, a mãe dele, Maria da Silva, afirmou, perante o juiz de paz ou similar, que ele teria 35 anos de idade. Nasceu, portanto, em 1740. E se Manuel Henriques dominou a região das Novas Minas de Canta Gallo por 26 anos, como registram esses e outros historiadores e foi preso em 1786, ele veio para os “Certões”, em 1760 e não em 1784, como afirmam alguns historiadores, fato que não é confirmado pelos documentos pesquisados pelo Instituto Mão de Luva, por Sebastião Carvalho e Rodrigo Oliveira.

 

Cena da tribo dos Puris. Tela de Debret. (Acervo da Biblioteca Nacional-BN).
Cena da tribo dos Puris. Tela de Debret. (Acervo da Biblioteca Nacional-BN).

1763 – O governador da Capitania do Rio de Janeiro instaura a “Devassa Geral do Extravio de Ouro nas Novas Minas de Canta Gallo”, outra data que desmente a data de 1784, como a vinda de Mão de Luva para esta região. O deslocamento do eixo de poder da Bahia para o Rio de Janeiro, que se tornou a capital do vice-reinado do Brasil nesse ano, pode ser devido, em parte, às transformações trazidas pela atividade mineradora na região. Vejam bem: em 1763 a região ocupada por Mão de Luva já era denominada, pela Coroa Portuguesa, por Novas Minas de Canta Gallo.

1767 – Mapa do “Certão occupado por índios bravos” elaborado por Manoel Vieira Leão, que integra as “Cartas topográficas da Capitania do Rio de Janeiro” mandadas tirar pelo Conde da Cunha, “Capitam General e Vice Rey do Estado do Brazil no anno de 1767”. Nos mapas seguintes, aparecem como “Sertões das Cachoeiras de Macacu” ou “de Canta Gallo”, “Novas Minas dos Sertões de Macacu” ou “de Canta Gallo” e “Canta Gallo”, usados indistintamente entre 1763 e 1806.

1786 – Prisão de Manuel Henriques, o Mão de Luva, seus irmãos e demais integrantes do grupo dos “Luvas”; início da ocupação do povoado pelo vice-rei que governava a Capitania do Rio de Janeiro. O garimpeiro Manuel Henriques foi levado para a cidade do Rio de Janeiro, onde foi “julgado” e deportado. Para onde? Não há registro oficial que nos leve a afirmar categoricamente se ele foi deportado para a África, teoria de Acácio Ferreira Dias, ou para a Capitania Hereditária de Santana, no Sul do país, segundo interpretação de Rodrigo Oliveira, especificamente para a região mais tarde denominada Estado do Rio Grande do Sul (RS). Pertenceu, inicialmente, a Pero Lopes de Souza (1497/1539), fidalgo português, navegador e militar, irmão de Martim Afonso de Souza. No RS, poderia ter recebido outro nome, mas não há documento que comprove o que aconteceu com ele depois. No processo de julgamento de Manuel Henriques não há nenhum depoimento de Mão de Luva (“A história é escrita pelos vencedores”). Os “vencedores”, se houve, foram o Vice-rei da capitania do Rio de Janeiro e seus comparsas.

1787 – Distribuição de sesmarias ou “datas” na região de Novas Minas de Canta Gallo, mediante edital; início da construção de uma pequena capela, mais tarde Igreja do Santíssimo Sacramento, reconhecida como freguesia do Santíssimo Sacramento por D. Maria I (Maria Francisca Isabel Josefa Antónia Gertrudes Rita Joana de Bragança), rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, conhecida como A Piedosa ou A Louca, a primeira freguesia em toda a região do Centro-Norte fluminense.

 

Caminho da saga de Manuel Henriques, o Mão de Luva, para chegar às terras do Certão occupado por índios bravos. Acervo do Instituto Mão de Luva, a partir de mapa do estado de Minas Gerais - 2020.
Caminho da saga de Manuel Henriques, o Mão de Luva, para chegar às terras do Certão occupado por índios bravos. Acervo do Instituto Mão de Luva, a partir de mapa do estado de Minas Gerais – 2020.

 

Manoel Pinto da Cunha e Souza, acompanhado de militares, um pároco e agentes públicos, instala-se no antigo local do povoado Mão de Luva, El Rey, em 1787; edifica a casa de Registro de Ouro e algumas construções administrativas; inicia-se a distribuição das sesmarias ou “datas” e, em seguida, a capela dedicada a São Pedro de Canta Gallo; cinquenta anos depois, deu-se o começo das obras da Igreja Matriz de Cantagalo, elevada a Santuário Diocesano do Santíssimo Sacramento, em 4 de junho de 2015.

1806 – Criação, pelo Vice-rei da Capitania do Rio de Janeiro, do distrito de Novas Minas de Canta Gallo pelo alvará de 9 de outubro de 1806, integrado ao município de Santo Antônio de Sá (atual Cachoeiras de Macau), e o reconhecimento da Freguesia do Santíssimo Sacramento. Rodrigo registra, à margem desse mapa: “nota-se as Minas de Cantagalo como área fronteiriça com a capitania mineira, o que valeu algumas disputas jurisdicionais entre o governador das Minas, Cunha Meneses, e o Vice-rei, Luís de Vasconcelos e Souza. Na verdade, o que se via ali era uma área de indefinição jurisdicional devido, entre outros fatores, à natureza geográfica que cercava o Rio Paraíba, até então o limite estabelecido entre as referidas capitanias”.

1814 – O distrito de Novas Minas de Canta Gallo é elevado à condição de município, sob a denominação de vila São Pedro de Canta Gallo, em 9 de março de 1814; suas terras confrontavam com o Rio Paraíba do Sul, ao norte de Minas Gerais, e os municípios fluminenses de Macacu, Magé, Macaé e Campos dos Goytacazes, o que demonstra da importância de Cantagalo no Império. Sintam a dimensão e a importância de Cantagalo para essa região e para o território fluminense, nos séculos 18 e 19.

1815 – Instalação do município de São Pedro de Cantagallo e ano de criação da Câmara Municipal de Cantagallo. Nomeação do primeiro Intendente, o vereador e presidente da Câmara Municipal, uma espécie de prefeito: Dr. João Batista Laper, segundo registros constantes das atas da Câmara Municipal.

2023 – Em 2023, ante a documentação referenciada, completando 263 (1760/2023) anos de fundação efetiva, a partir da chegada de Manuel Henriques ao local onde mais tarde ficou localizada a cidade de Cantagalo.

A região ocupada por Manuel Henriques, entre 1760 e 1786, hoje está distribuída entre catorze municípios: Aperibé, Cantagalo, Carmo, Cordeiro, Bom Jardim, Duas Barras, Itaocara, Macuco, Nova Friburgo, Santa Maria Madalena, São Fidélis, São Sebastião do Alto, Sapucaia, Sumidouro, Trajano de Moraes. Até outubro de 2023. Os legisladores sempre têm “ideias” novas…

 

Desenho da imagem de Manuel Henriques elabora por Inteligência Articial (IA). Acervo Instituto Mão de Luva.
Desenho da imagem de Manuel Henriques elabora por Inteligência Articial (IA). Acervo Instituto Mão de Luva.

 

O nome de Canta Gallo ou Cantagalo, que aparece em todas as referências às terras desbravadas pelo garimpeiro Manuel Henriques, uma referência ao nosso município, não tem nenhum registro com base em documento oficial. Essa citação surge no romance de Acácio Ferreira Dias, O Mão de Luva – Fundador de Cantagalo, mas sem base científica. São Martinho, na busca por Mão de Luva, teria ouvido um galo cantar e pensou que era o núcleo do Mão de Luva. Isso pode ser uma piada. São Martinho e Manuel Henriques eram companheiros, por conveniência dos governadores da capitania das Minas Gerias. Por outro lado, quando do primeiro contato entre os dois, possivelmente em 1767, esse sinal pode ter revelado o local do povoado El Rey. Não vejo inconveniente em aceitar essa história oral.

Registre-se que a real história de Manuel Henriques foi publicada pelo jornalista, pesquisador e escritor Sebastião A. B. Carvalho, em 1990, no livro de sua autoria – O tesouro de Cantagalo – A odisseia de Mão de Luva nos Sertões do Macacu (Nova Friburgo, RJ: In Media Res, 2020). Posteriormente em A odisseia de mão de luva na região serrana fluminense (Cantagalo, RJ: Outra Margem, 2020). Nas pesquisas, Sebastião de Carvalho trata Manuel Henriques como garimpeiro, destruindo a estória do Mão de Luva, bandoleiro, salteador.

Por essas e outras histórias documentadas, Manuel Henriques é considerado do fundador de Cantagalo, mas não para as autoridades do município. Infelizmente.

 

Celso Frauches é escritor, jornalista, historiador, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Mão de Luva.
Celso Frauches é escritor, jornalista, historiador, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Mão de Luva.

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