“Código Humano de Conduta”, por Amanda de Moraes

A advocacia criminal tem lá os seus mistérios. Definem os mais insensíveis tratar-se de ofício destinado, tão-somente, ao auxílio de criminosos. Ponto. Convenhamos que a nobreza foge a essa redução, apesar de sabermos que a democracia se revela pelo trato dos renegados: a condição de ser humano impõe algumas balizas e limites ao poder repressor estatal.

Há os mais refinados, que entoam a defesa dos bens mais preciosos a qualquer cidadão: a liberdade, a dignidade e a vida.

Façamos, agora, da tinta da caneta algo mais peculiar: belezas discretas, perceptíveis a poucas almas. O evidente, em princípio, é tedioso; há um quê de encanto em atos e formas singulares. Lá vem a cena!

Era um dia chuvoso, daqueles que suplicam cama, banho quente e quase nada por fazer. Um livro de bolso, no máximo, tirado do roupão.

Antônio, apesar de respirar a juventude de seus 30 e poucos anos, não ficava indiferente à melancolia dos dias cinzentos.

Mesmo assim, logo cedo, vestiu o seu terno, enlaçou cuidadosamente a sua gravata e rumou ao escritório. O seu rigoroso senso de responsabilidade o impedia de agir diferente. Não podia faltar à labuta. Inventar uma desculpa… jamais! Advogado, diga-se, é palavra que provem do latim advocatus, que significa aquele a quem se pede socorro (vocatus ed).

Nesse dia, um aflito cliente o aguardava no escritório.

Jorge, homem de cabelos grisalhos, aparentando uns 60 anos do castigo da vida, matinha as mãos tensas entrelaçadas sob o colo. A espera por Antônio parecia interminável: podia ouvir o barulho dos ponteiros, mas querendo acelerar os longos minutos que se sucediam. A sala de reunião já tinha sido por ele analisada em minúcias, como forma de cegar a ansiedade.

Ao anúncio da chegada de Antônio pela ranzinza secretária, Jorge se ajeitou na cadeira, em postura ereta e apreensiva.

Bom dia, Sr. Jorge – disse o advogado ainda um pouco ofegante.

Desculpe-me da demora, mas é que em dias chuvosos o trânsito não colabora com a presteza devida à justiça. Como posso ajudar o senhor?

Jorge, inábil em expressar afeto, ora mirava a mesa, ora olhava para os lados:

Dr. Antônio, prazer! Ouvi falar muito bem do Sr. Bom… estou com um problema grave.

Está no lugar certo, Jorge. Vamos ao problema e às soluções!

Doutor, recebi esta intimação para comparecer à Polícia Federal. Isso é um absurdo, sou um empresário que atua no ramo de materiais de construção há duas décadas! Nunca tive nada em meu desfavor, sempre fui muito correto ao longo da minha vida! Cá estão as cópias do processo, que pedi para um amigo advogado buscar.

O leitor, caso queira dar voz a voz de Jorge, pode ler trêmulo o trecho acima.

Antônio, experiente, entendeu logo sobre o fato em investigação: apurava-se uma suposta fraude à licitação em um contrato firmado entre a empresa de Jorge e o Governo do Estado.

É verdade que o calejado empresário sempre jogou “dentro das quatros linhas da lei“. As alterações de grupos políticos, as trocas de governo, jamais influenciaram a prestação do seu serviço, que sempre se pautou pela sua capacidade técnica. Não obstante, a justiça tem os seus descuidos.

Jorge, pelo que analisei, há um grave equívoco, que podemos esclarecer com a apresentação de documentos.

Sim, Doutor. Tenho todos os papéis que comprovam que todo o serviço foi prestado, dentro do preço correto, sem qualquer problema.

Envie ao meu e-mail essa documentação, pois irei pessoalmente conversar com o Delegado de Polícia Federal. Ao trabalho, sem motivos para mais delongas e apreensões! Irei acompanhá-lo até o elevador, Jorge. Em breve, falaremos! – pontuando o advogado ao apoiar as mãos nos braços da cadeira para erguer o corpo e abrir a porta da sala.

Nesse momento, Jorge não se moveu. Com os olhos rasos d’água, começou a falar… impondo que o advogado se acomodasse novamente na cadeira.

Teceu, o aflito cliente, horas de explicações sobre o seu passado, a sua família, a infância difícil que tivera, todo o esforço desprendido para que se tornasse um empresário rico, fora os empenho e sacrifícios diários para manter um serviço de excelência e honrar com todos os contratos em vigor.

A questão de direito não carecia tantos detalhes. Para esse caso, eram dispensáveis.

Antônio não interrompeu. Permaneceu atento aos pormenores, manifestando acolhimento pelo olhar e delicados gestos com a cabeça, que humanizava em tom de compreensão, até que… as lágrimas de Jorge secassem, as palavras se esvaíssem, e o cliente pudesse respirar um pouco mais aliviado.

Jorge sentira no advogado a segurança técnica. A intuição empresarial assegurava-lhe, ali, todos os direitos, que uma Carta Magna prevê. Porém, àquela bendita hora da confissão, o advogado usou o mais fino Código, para libertar quaisquer culpas: o Código Humano de Conduta.

Nos dias de frio, cinzentos, a missão de Antônio entoa: “É preciso azular o céu de quem está em tempestade, doutor! Vá.” E Antônio vai, aprendendo mais a ser feliz…

 

Amanda Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes.
Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes.

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