“Conexão artificial”, por Amanda de Moraes

Bonecas existem há bastante tempo. Quando se pensa em um presente para uma menina, lá está ela no imaginário popular. Coleções de Barbies, Susis, Bonecas de Pano, Emílias e outras tantas fizeram (e fazem) parte da infância de gerações. Ela irá gostar, porque é uma menina.

Há um simbolismo para além do entretenimento lúdico. Desde a infância, limitar os brinquedos de cada criança, de acordo o sexo, é um incentivo na construção dos papéis de gênero. Meninas brincam de bonecas. Meninos brincam de carrinho e heróis. Assim, moldam-se as  aptidões, gostos e afinidades.

É divertido, para muitas meninas, brincar de bonecas; não há erro nessa questão. O problema começa a surgir quando se busca restringir o imaginário feminino a casinhas e bonecas, principalmente quando a alma pede por mais; assunto questionado por muitos estudiosos e movimentos sociais que lutam pela igualdade de gênero.

Nas últimas semanas, as bonecas e bonecos ganharam, por outra razão,  espaço na mídia. São os bebês reborn, bonecas hiper-realistas que imitam crianças recém-nascidas, em seus mínimos detalhes: textura, cabelos implantados, cheiro.  Eles não são comprados, mas, sim, são “adotados” em lojas (algumas famosas) que são uma espécie de modelo artificial de uma maternidade. Para incrementar a experiência, há partos simulados, carteira de vacinação e enxoval. Acredite! Isso existe.

Apesar de essas réplicas de bebês não serem novas, vêm ganhando repercussão significativa, com críticos de um lado e entusiastas de outro. Deputados e vereadores já correram para propor medidas sobre o assunto, que vão desde a criação do Dia da Cegonha Reborn à multa para quem pedir prioridade em atendimento no Sistema Único de Saúde para os bonecos humanizados.

O ser humano se apega emocionalmente. Interage com o meio e com os objetos, aos quais tem o direito de dar um sentido diferente. Para muitos, o mundo da fantasia é necessário para sobreviver perante a realidade nua e crua. Brincadeira não é exclusividade de criança. No entanto, quando passamos a nos relacionar de forma realista com objetos e perdemos, aos poucos, a conexão com o real, o questionamento é válido. Quando não há mais a diferença entre a fantasia e a realidade.

Estudos mostram: terapia com bonecas diminui sintomas de agressividade e outras questões psicológicas. Seja como for, o assunto traz à tona uma questão: o relacionamento da sociedade com objetos, a fragilidade e banalização dos laços afetivos.

O número de pessoas relacionando-se com Inteligência Artificial é preocupante. Existem sim notícias de relacionamentos amorosos com Ias; Alexas ocupando o papel de amigos; assistentes virtuais fazendo as vezes de psicólogos. São conselhos e outras orientações com objetos não humanos. Para facilitar a conexão, programas ganham nomes, imitam vozes e sotaques.

Aplicativos de namoros com IAs oferecem parceiros e parceiras com características selecionadas pelo usuário, ajuste de respostas e necessidades, evitando conflitos e adequando-se aos interesses do consumidor.  O que antes era ficção de filmes distópicos, hoje se torna realidade.

Em uma sociedade solitária, com medo de julgamento e de suas imperfeições, com dificuldade de interagir com pensamentos diferentes dos seus, programas de interação ajustáveis à sua inteira vontade ganham espaço. Caminhamos para o empobrecimento das relações humanas, isolamento social e o enrijecimento da alma.

Inteligência Artificial pode simular emoções, mas não tem a capacidade de senti-las. Lidar constantemente com programas, treinados para atender às expectativas, atrofia a capacidade de lidar com imperfeições humanas, gerir conflitos e aprender com pontos de vista diferentes.

Se um dos pilares da vida é o desenvolvimento individual e coletivo, substituir pessoas por objetos nos leva ao caminho oposto.   Pelo contato com o outro indivíduo, na fricção de ideais, debates e compreensão das imperfeições, podemos nos tornar melhores, porque temos o dom da vida.

Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes
Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes

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