Bonecas existem há bastante tempo. Quando se pensa em um presente para uma menina, lá está ela no imaginário popular. Coleções de Barbies, Susis, Bonecas de Pano, Emílias e outras tantas fizeram (e fazem) parte da infância de gerações. Ela irá gostar, porque é uma menina.
Há um simbolismo para além do entretenimento lúdico. Desde a infância, limitar os brinquedos de cada criança, de acordo o sexo, é um incentivo na construção dos papéis de gênero. Meninas brincam de bonecas. Meninos brincam de carrinho e heróis. Assim, moldam-se as aptidões, gostos e afinidades.
É divertido, para muitas meninas, brincar de bonecas; não há erro nessa questão. O problema começa a surgir quando se busca restringir o imaginário feminino a casinhas e bonecas, principalmente quando a alma pede por mais; assunto questionado por muitos estudiosos e movimentos sociais que lutam pela igualdade de gênero.
Nas últimas semanas, as bonecas e bonecos ganharam, por outra razão, espaço na mídia. São os bebês reborn, bonecas hiper-realistas que imitam crianças recém-nascidas, em seus mínimos detalhes: textura, cabelos implantados, cheiro. Eles não são comprados, mas, sim, são “adotados” em lojas (algumas famosas) que são uma espécie de modelo artificial de uma maternidade. Para incrementar a experiência, há partos simulados, carteira de vacinação e enxoval. Acredite! Isso existe.
Apesar de essas réplicas de bebês não serem novas, vêm ganhando repercussão significativa, com críticos de um lado e entusiastas de outro. Deputados e vereadores já correram para propor medidas sobre o assunto, que vão desde a criação do Dia da Cegonha Reborn à multa para quem pedir prioridade em atendimento no Sistema Único de Saúde para os bonecos humanizados.
O ser humano se apega emocionalmente. Interage com o meio e com os objetos, aos quais tem o direito de dar um sentido diferente. Para muitos, o mundo da fantasia é necessário para sobreviver perante a realidade nua e crua. Brincadeira não é exclusividade de criança. No entanto, quando passamos a nos relacionar de forma realista com objetos e perdemos, aos poucos, a conexão com o real, o questionamento é válido. Quando não há mais a diferença entre a fantasia e a realidade.
Estudos mostram: terapia com bonecas diminui sintomas de agressividade e outras questões psicológicas. Seja como for, o assunto traz à tona uma questão: o relacionamento da sociedade com objetos, a fragilidade e banalização dos laços afetivos.
O número de pessoas relacionando-se com Inteligência Artificial é preocupante. Existem sim notícias de relacionamentos amorosos com Ias; Alexas ocupando o papel de amigos; assistentes virtuais fazendo as vezes de psicólogos. São conselhos e outras orientações com objetos não humanos. Para facilitar a conexão, programas ganham nomes, imitam vozes e sotaques.
Aplicativos de namoros com IAs oferecem parceiros e parceiras com características selecionadas pelo usuário, ajuste de respostas e necessidades, evitando conflitos e adequando-se aos interesses do consumidor. O que antes era ficção de filmes distópicos, hoje se torna realidade.
Em uma sociedade solitária, com medo de julgamento e de suas imperfeições, com dificuldade de interagir com pensamentos diferentes dos seus, programas de interação ajustáveis à sua inteira vontade ganham espaço. Caminhamos para o empobrecimento das relações humanas, isolamento social e o enrijecimento da alma.
Inteligência Artificial pode simular emoções, mas não tem a capacidade de senti-las. Lidar constantemente com programas, treinados para atender às expectativas, atrofia a capacidade de lidar com imperfeições humanas, gerir conflitos e aprender com pontos de vista diferentes.
Se um dos pilares da vida é o desenvolvimento individual e coletivo, substituir pessoas por objetos nos leva ao caminho oposto. Pelo contato com o outro indivíduo, na fricção de ideais, debates e compreensão das imperfeições, podemos nos tornar melhores, porque temos o dom da vida.