“Coronel”, por Dr Júlio Carvalho

Certa vez, li em algum livro que a vida é como um grande campo de batalha, cada dia cai um guerreiro, mas a batalha da vida continua. Parece um exagero de quem escreveu, todavia quando analisamos concluímos que existe certa analogia.

À medida que nossa vida passa, vamos perdendo amigos e parentes, pessoas que nos ajudaram na batalha vital, não financeiramente, mas nos seus relacionamentos de amizade e parentesco.

Nesta semana, quero focalizar neste artigo uma das pessoas mais inteligentes e mais humanas que conheci desde minha infância.

Ele não nasceu em Cantagalo, era oriundo de um município vizinho, mas veio para Cantagalo ainda na infância e aqui permaneceu por dezoito anos, estudando no Grupo Escolar Lameira de Andrade e no extinto Colégio Euclides da Cunha. Pessoa educadíssima e bem humorada, jamais assisti ele se desentender com outros jovens da nossa época.

Além de excelente aluno, mantinha duas paixões: canários da terra e futebol. Andava a pé grandes distâncias em busca de um bom canário, hábito que manteve por toda vida. Já na maturidade da vida, contou-me que tinha ido à Bahia porque lá existiam ótimos canários.

No futebol, era quase que perfeito, realizava jogadas inacreditáveis, criadas por ele mesmo, pois naquela época não havia televisão para assistir jogos de futebol das grandes cidades e copiar os jogadores profissionais. Lembro-me que, quando eu estava com 17 anos, numa preliminar no campo do Cantagalo E.C., colocaram-me de centroavante, e ele armando o jogo no meio do campo, pelo segundo time do Flamenguinho A.C. Em duas jogadas geniais, ele me colocou face a face com o goleiro e gritou “faz Júlio” e eu fiz dois gols. Foi a única vez, pois eu não passava de um esforçado, sem habilidade para o futebol.

Lembro-me que, na adolescência, em conversa na Praça dos Melros (atual João XXIII), dissemos que queríamos ser médicos e realizamos nossos desejos; na mesma universidade do Rio de Janeiro, ele em 1960 e eu no ano seguinte.

Quando estava com dezoito anos, foi estudar no Rio de Janeiro. Torcedor do América F.C., resolveu, certo dia, treinar no juvenil do seu clube do coração, no campo que ficava na rua Campos Sales, na Tijuca. Sua atuação foi tão extraordinária que o clube rubro queria que ele ficasse, mas ele respondeu: “vim para o Rio para estudar e não quero compromisso com futebol”.

Em Cantagalo, todos o conheciam como Coronel. Por que esse apelido? Quando criança, ainda no curso primário, tinha o hábito de estudar com uma casquete de pano na cabeça e andando de um lado para outo em um longo corredor, como se estivesse marchando; seus irmãos mais velhos começaram a chamá-lo de Coronel, e o apelido pegou! Era o penúltimo de uma irmandade de cinco irmãos. Seu nome verdadeiro era Adrelírio José Rios Gonçalves.

Aos 18 anos, foi para a cidade do Rio de Janeiro; depois de um ano de preparatório no Curso São Salvador, ingressou na Faculdade de Ciências Médicas (UERJ), aprovado em 5º lugar no vestibular, sendo diplomado em 1960.

Durante a faculdade, foi aprovado em dois concursos públicos. Para o SAMDU e para a SUSEME. No primeiro, escolheu trabalhar no Posto do SAMDU de Campo Grande, autêntica zona rural do Rio de Janeiro. Lá ocorreu uma passagem que demonstra toda bondade de espírito do Coronel.

Havia uma senhora pobre que quase toda semana levava a criança desnutrida para Coronel examinar no plantão. Ele passava alguns medicamentos e orientava a mãe quanto a alimentação da criança. Certo dia, a mãe falou que não podia alimentar a criança porque era muito pobre.

Coronel guardou aquilo no seu pensamento. Em outro plantão, quando a ambulância passava por uma estrada de chão, ele viu um homem conduzindo uma cabra com um volumoso úbero e um cabritinho. Pediu que o motorista parasse a ambulância, desceu e perguntou ao camponês se ele vendia a cabra. Acertado o negócio, colocou a cabra no interior da ambulância e levou de presente para a mãe pobre. Resolveu o problema da fome da criança, que foi salva por um ato de caridade.

Jamais ele me contou esta passagem. Fui saber por um enfermeiro, no ano seguinte, quando trabalhei no mesmo local. Era um verdadeiro cristão, “a mão direita não deve saber o que a mão esquerda faz”.

No concurso da SUSEME, enquanto todos os aprovados optavam para trabalhar no serviço de Pronto Socorro, ele escolheu o Hospital São Sebastião, no bairro do Caju, hospital dedicado ao tratamento de doenças infectocontagiosas; lá permanecendo até a aposentadoria. Certa vez me disse que não saia de lá porque ali era a maior escola de infectologia do Brasil, especialidade a qual se dedicou e que conhecia profundamente.

No sexto ano do curso médico, prestou concurso para residente de Clínica Médica do Hospital do Ipase. Havia uma só vaga, todavia ele e outro colega da Ciência Médicas empataram em primeiro lugar, com a mesma nota; resolvendo o IPASE admitir os dois mediante o brilhantismo de ambos no exame realizado. Permaneceu naquela instituição até a aposentadoria, criando um setor de infectologia, sendo sempre acompanhado pelos jovens médicos residentes, sequiosos de ouvir seus ensinamentos de infectologia.

Pertenceu ao quadro docente da Universidade Gama Filho. Certa vez, casualmente, nos encontramos na avenida Graça Aranha (RJ), ocasião em que ele me disse que a remuneração como professor era insuficiente, mas que ele permanecia na função para poder transmitir aos jovens o que ele aprendera durante muitos anos de estudo sobre infectologia.

 

"Adrelírio José Rios Gonçalves e a infectologia no Brasil - Um tributo ao mestre" - evento realizado pela Fiocruz, em 9 de julho de 2010
“Adrelírio José Rios Gonçalves e a infectologia no Brasil – Um tributo ao mestre” – evento realizado pela Fiocruz, em 9 de julho de 2010

 

No dia 9 de julho de 2000, ao sair da residência de um paciente em Copacabana, bairro em que residia, sentiu-se mal; percebendo que se tratava de um infarto do miocárdio, entrou em um táxi, pedindo que o motorista fosse com urgência para o IPASE; ao chegar ao local, faleceu dentro do táxi. A medicina brasileira perdia um importante infectologista e eu um amigo de infância, que na Faculdade de Ciências Médicas foi meu verdadeiro preceptor.

Na ocasião do seu falecimento, o Prof. Walter Tavares, no Boletim da Sociedade de Infectologia do Rio de janeiro, assim se expressou: “A Sociedade de Infectologia do Rio de janeiro homenageia o médico e infectologista Adrelírio José Rios Gonçalves, homem poderoso pela pureza de sua alma e pelo amor que lhe sobrava. Certamente, os contemporâneos desse grande médico e ser humano exemplar guardarão a marca de sua existência“.

Nos anais do centenário da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi registrada uma homenagem ao querido colega que assim termina: “Os anais deste evento, contendo trabalhos do Dr. Adrelirio, seus discípulos e colegas, ilustram bem a abrangência e a importância de sua extraordinária contribuição, o que certamente o destacará na história da ciência médica brasileira entre os principais infectologistas e sanitaristas de nosso país”.

Resumindo, Coronel foi o exemplo de competência, bondade e responsabilidade, que serve para honrar a medicina brasileira.

 

Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.
Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.

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