“Da infância na roça & outras estórias”, por Celso Frauches

A casa de meus pais, na Fazenda da Serra, numa criação artística do amigo Júlio César da Silva, designer gráfico em Brasília.

 

A minha primeira infância foi na roça do distrito de São Sebastião do Paraíba e do município que fica do outro lado do Rio Paraíba do Sul, “um rio que passou em minha vida”.

Henrique Frauches parece que não estava gostando de trabalhar na Fazenda Serra, sob a administração do avô Américo Frauches. Ou não ganhava o suficiente para sustentar a “numerosa” família, integrada por ele, minha mãe Telva (Etelvina) e por mim, um moleque tímido, que falava pouco. Naquele tempo, os miúdos ou filhotes de gente não podiam falar na presença dos mais velhos, exceto quando perguntado. E a expressão “por quê?” era proibida veladamente.

Por volta dos cinco anos de idade, lembro-me de ter morado na fazenda do seo Oto Ruback, no município de Pirapetinga, MG. Meu pai tinha uma venda (era assim que se batizava, àquela época, os armazéns), à beira da estrada que ligava essa fazenda à cidade de Pirapetinga, partindo das margens do Rio Paraíba do Sul, que separa as Minas Gerais do Estado do Rio de Janeiro, nesse trecho, do povoado do Porto do Tuta, em São Sebastião do Paraíba, onde moramos mais tarde.

Desse pequeno armazém, lembro-me de coisas que meu pai comerciava e de que eu gostava demais: bacalhau e outros peixes salgados e carne seca em tempos sem o conforto das geladeiras. Eu sempre tirava umas lascas, às escondidas. Creio que meu pai fazia vistas grossas às peraltices alimentares de seu filho único.

 

Dois coqueiros da Fazenda da Serra.
Dois coqueiros da Fazenda da Serra.

 

De Pirapetinga, guardo apenas a lembrança do “João Dentista”, já na segunda infância, entre os nove e os onze anos. E vocês já devem saber o motivo…

O João Dentista tinha consultório em Pirapetinga, mas fazia tratamentos dentários em domicílio. E tinha clientes em diversas famílias do Porto do Tuta e Porto Marinho. O meio de transporte era o cavalo, movido a capim-gordura. Na garupa do cavalo, ele levava o equipo odontológico, desmontado. Quando morávamos na Fazenda Serra, às vezes ele passava alguns dias em nossa casa, tratando dos dentes meus, de meus pais e dos colonos. Chegava, descansava, montava o equipo e começava a trabalhar. O equipo desmontável era movido a energia humana, por um pedal. Quando ele começava a “pedalar”, aquela broca, sem água, esquentava o dente e era uma dor desagradável, irritante. Parava de pedalar e esguichava água fria no dente. Saia uma fumaça. O dente esfriava e a tortura continuava. Quem conheceu deve, como eu, ficar arrepiado quando se lembra da tortura do tratamento com dor de uma cárie. Era “um inferno”! Hoje é moleza. Nem sempre…

Por volta dos meus dez anos, apareceu uma cárie no dente frontal superior. Era necessário cortar parte do dente. Eu só concordei se a prótese fosse de ouro. Aprovado o meu pedido, carreguei aquela obturação brega por grande parte de minha vida. Nem me lembro quando me livrei daquela cafonice da infância…

Voltando ao seo Oto. Ele era udenista fervoroso. Parêntesis: uma explicação para as novas gerações. Udenista era o cara filiado a um partido político denominado União Democrática Nacional (UDN), classificado pelos teóricos da política como “de direita”, mesmo tendo integrantes canhotos…

Além de udenista, o seo Oto era fanático pelo brigadeiro Eduardo Gomes (1896-1981), um militar da Aeronáutica que se aventurou a uma candidatura à Presidência da República, pela UDN, nas eleições de dezembro de 1945, logo após o término da segunda grande guerra mundial e o fim da Era Vargas. O seo Oto mandou construir, em sua fazenda, um “campo de aviação”, aeroporto para os íntimos do “mais pesado que o ar”, somente para receber o brigadeiro Eduardo Gomes, em plena campanha eleitoral. Foi uma festança para o povaréu da região. Eu estava com nove anos de idade e já tínhamos voltado a morar na Fazenda da Serra. Meus pais foram convidados e eu fui de contrapeso. Um avião monomotor, conhecido como teco-teco, ficou à disposição de todos os que quisessem dar uma voltinha pela região. Não resisti e minha mãe foi comigo (só comportava duas pessoas, além do piloto). Que maravilha! Ver a Fazenda da Serra, a Fazenda do meu avô Pedro Coelho, do tio Joaquim Moça e da tia Vivina, as demais fazendas que conhecia e o rio Paraíba do Sul, Porto do Tuta e Porto Marinho do alto. Nunca me esqueci dessa aventura. A minha prima Leni se lembra de histórias de sua mãe, tia Nita, que também fez essa aventura. O tio Walter, esposo dela, era udenista, como o brigadeiro.

 

O Marechal do Ar Eduardo Gomes, candidato a presidente da República em 1945 e 1950, derrotado nas duas vezes, um dos comandantes do golpe de 1964 que derrubou Jango Goulart.
O Marechal do Ar Eduardo Gomes, candidato a presidente da República em 1945 e 1950, derrotado nas duas vezes, um dos comandantes do golpe de 1964 que derrubou Jango Goulart.

 

Agora, uma curiosidade. Em tempos sem fundo partidário e fundo eleitoral, uma excrescência sem nome na atual conjuntura, a campanha eleitoral do brigadeiro Eduardo Gomes foi, em grande parte, financiada com a venda de doces de chocolate, em formato de bolinhas, que as mulheres que formavam a base eleitoral do candidato produziam e vendiam durante os comícios. Esse doce acabou ficando conhecido como “brigadeiro”, uma delícia. Mas Eduardo Gomes terminou a sua vida militar como marechal-do-ar. E não mudaram a denominação do doce ‒ imortalizado como brigadeiro ‒ para “marechal do ar”…

Ah! Quem venceu a eleição? Foi outro militar, este do Exército, o general Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), ministro da Guerra (hoje da Defesa) de Getúlio Vargas, pelo antigo Partido Social Democrático (PSD), comandado em Cantagalo pelo cel. Marcelino de Paula, com o apoio do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Esses dois partidos, hoje com as mesmas siglas, não existem mais na sua original concepção. São partidos de aluguel.

 

Ioiô, uma das minhas distrações prediletas, importados pelo presidente Gaspar Dutra, por volta de 1948.
Ioiô, uma das minhas distrações prediletas, importados pelo presidente Gaspar Dutra, por volta de 1948.

 

Não sei se Freud ou Jung explica, mas, nas crises brasileiras, sempre surge a opção militar. Pessoas crédulas talvez pensem que os militares são uma classe à parte da sociedade, íntegros, incorruptíveis, “salvadores da pátria”. Esquecem-se de que são seres humanos iguais a nós, pobres civis. Como nós, estão sujeitos a erros e acertos, a escolhas boas e más, à corrupção (ativa ou passiva) e assim por diante. O marechal Dutra cumpriu o seu mandato com discrição, de 1946 a 1951. Era um homem honrado, íntegro. Fez o dever de casa, como disciplinado militar. Destaque-se, porém, algumas decisões relevantes e polêmicas de seu governo: a proibição de “jogos de azar” (Por que não são “jogos de sorte”?), o rompimento com a então comunista União Soviética, criada em 1922 e extinta em 1991. Essa ação foi completada, em 1947, pelo Tribunal Superior Eleitoral, que considerou fora da lei o Partido Comunista do Brasil (PCB). O presidente Dutra fez importação em massa de bugigangas, como, por exemplo, os ioiôs… Vocês ainda se lembram desse brinquedo? Simplesmente “fritou” as nossas reservas no mercado internacional com essas porcarias americanas. Hoje são chinesas, como a covid-19.

A conversa está boa, mas o amigo Célio vai me puxar a orelha se eu não terminar por aqui. O espaço estourou! Se não for demitido, voltarei na próxima semana. Mas não sei essa estória terá continuidade. Olá, amigo Júlio, espero não ter roubado o seu espaço…

 

Celso Frauches
Celso Frauches é escritor, jornalista, historiador, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Mão de Luva.

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