“Dos muares às locomotivas”, por Júlio Carvalho

Na segunda metade do século XIX, Cantagalo era um dos maiores produtores de café do Império do Brasil, graças ao trabalho dos infelizes escravos. Os proprietários de terra adquiriram abundantes riquezas, enquanto os títulos nobiliárquicos surgiram por toda a região: barões, condes e viscondes de tal e tal.

A abundante produção de café era transportada para a capital do país de modo perigoso e altamente laborioso. Não havia estradas, apenas caminhos e trilhas por onde passavam as tropas de muares carregadas de café acondicionado em bruacas, grandes bolsas de couro bovino colocadas de cada lado dos burros e mulas, podendo, cada animal, transportar até 150 kg da rubiácea.

De Cantagalo a Porto das Caixas, na baixada fluminense, onde havia um embarcador para o Rio de Janeiro, a viagem demorava alguns dias. Depois de caminhar até Nova Friburgo, através de estreitos caminhos, os animais desciam a serra. Era o trecho mais acidentado e perigoso, passando por trilhas junto às rochas, onde qualquer escorregão poderia levar à morte em um alto precipício.

Depois era a baixada que facilitava a marcha da tropa, exceto nos períodos chuvosos, onde os atoleiros poderiam prender os animais carregados, levando alguns ao extermínio. Chegando a Porto das Caixas, o café era transferido para embarcações e levados para a cidade do Rio de Janeiro.

As tropas que conduziam a riqueza da terra para a capital do império também traziam os objetos fabricados na Europa para o interior do Brasil, uma vez que nosso país, depois da independência, ainda não possuía indústrias. Vinham até trabalhos artísticos que enriqueciam as residências dos nobres e dos grandes senhores de terras produtivas.

No seu extraordinário livro CANTAGALO – Da miragem do ouro ao esplendor do café, o competente jurista e grande historiador da nossa região, Desembargador Federal, Dr. Clélio Erthal, no capítulo 35, “As tropas e os tropeiros”, descreve minuciosamente a luta titânica desses heróis anônimos que, se deslocando pelo solo brasileiro, em vários sentidos, fizeram a nação crescer, sendo, ao mesmo tempo, um dos fatores da unidade nacional.

Dr. Clélio, além de descrever as estradas abertas no sentido de Niterói, Macaé e São Fidelis, cita nominalmente os chefes tropeiros de algumas famílias da região: Monnerat, Erthal e Wermelinger; em geral, era escolhido um jovem da família.

Era um trabalho penoso, durando uma semana ou mais; as tropas caminhavam cerca de 25 km por dia, parando nos pousos, onde os tropeiros e os animais descansavam e se alimentavam, passando a noite protegidos; eram os pousos pré-estabelecidos.

Numa sociedade desigual, formada por ricos proprietários de terras e por escravos, as tropas de muares deram origem a uma figura singular: o tropeiro, figura representada por homens rudes e livres, que, conduzindo suas tropas, percorriam longas distâncias, levando para o sertão o que chegava do velho mundo e trazendo para as cidades litorâneas os frutos da terra que alimentavam as cidades.

Os tropeiros vindos do Rio Grande do Sul chegavam a Sorocaba, onde existe o Museu dos Tropeiros; dali se dirigiam em vários sentidos. Além de tropeiros, eram mercadores, vendendo diversos tipos de mercadorias e animais, levando notícias do litoral para o interior. Nos pousos em que passavam as noites, foram surgindo pequenas casas comerciais, capelas e algumas residências, sendo os embriões que deram origem a muitas cidades brasileiras.

No dia 30 de abril de 1854, o imperador D. Pedro II inaugurava a parte inicial da estrada de ferro para Petrópolis, ligando o porto Mauá, no Rio de Janeiro, a Fragoso, numa distância de 14 km. A partir desse momento, os trilhos se expandiram pelo solo brasileiro como teias de aranhas; as locomotivas corriam pelos vales e venciam as serras rumo ao interior.

Cantagalo não podia ficar indiferente a esse surto de progresso, sendo que Antônio Clemente Pinto, o Barão de Nova Friburgo, nascido em Portugal em 6 de janeiro de 1795, vindo para o Rio de Janeiro em companhia de um tio, trabalhou no comércio, ficando rico. Todavia, segundo alguns autores, sua riqueza estava alicerçada no tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro, no período de 1811 e 1830.

Homem riquíssimo, possuía quinze fazendas, sendo doze situadas no município de Cantagalo, todas produzindo café, pelo trabalho de 2.000 escravos. O produto da terra era transportado para Porto das Caixas no lombo de muares. Ele sentiu necessário e urgente passar para um meio de transporte mais rápido e de menor custo. Pensando desse modo, o Barão de Nova Friburgo conseguiu a concessão para a ferrovia denominada Estrada de Ferro Cantagallo, obra gigantesca realizada em três etapas.

A primeira etapa, com 39 km, ligava Porto das Caixas a Cachoeira de Macacu; em solo plano da baixada fluminense, foi a mais fácil de execução, levando menos de seis meses para ficar pronta. Exigiu a construção de algumas pontes e aterros nas depressões encontradas no terreno.

Com o falecimento do Barão de Nova Friburgo em 1869, seu filho, Bernardo Clemente Pinto Sobrinho, 2º Barão de Nova Friburgo, assumiu a responsabilidade para continuar a construção da ferrovia. Era o menor trecho (35 km) mas, ao mesmo tempo, o de execução mais difícil, pois teria que vencer o obstáculo da serra entre Cachoeira de Macacu e Nova Friburgo. Os trabalhos consumiram quase quatro anos, sendo dirigidos pelo engenheiro Júlio von Borell du Verney. Nesse período, faleceu em um acidente o engenheiro Theodoro de Oliveira, sendo homenageado com seu nome afixado na estação ferroviária situada no ponto mais elevado da ferrovia.

No dia 25 de março de 1870, finalmente, a primeira composição ferroviária da E. de F. Cantagallo chegava à estação de Nova Friburgo, com maravilhosa festa, a presença do Imperador D. Pedro II e banquete. O Dr. Bernardo Clemente Pinto Sobrinho é agraciado com o título de 2º Barão de Nova Friburgo.

A terceira etapa da ferrovia, ligando Nova Friburgo a Macuco (na época, distrito de Cantagalo), foi construída pelo 2º Barão de Nova Friburgo, com 70 km de extensão. Posteriormente foi criado o ramal de Cantagalo e, finalmente, os trilhos da ferrovia chegaram a Portela.

No final do século XIX, a estrada de ferro foi vendida aos ingleses, passando a ter o nome de E. de F. Leopoldina; na década de 1940, passou para o governo federal e, na década de 1960, no curto e instável governo de Jânio Quadros, tendo como Ministro dos Transportes o Gal. Juarez Távora, a ferrovia foi extinta, sendo os trilhos arrancados e as locomotivas cortadas a maçarico próximo à Niterói.

Durante um século essa ferrovia foi o único meio de transporte de algumas cidades, representando o elo entre comunidades e abastecendo o comércio das cidades. Infelizmente, a incompetência de um governo de apenas sete meses determinou o seu triste final.

 

Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo
Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo

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