“Escravos: construtores anônimos de Cantagalo”, por Celso Frauches

Escravos garimpam ouro para Manuel Henriques e seus companheiros de garimpagem de ouro de aluvião. (Crédito: J.J.Tschudi).

Escravos garimpam ouro para Manuel Henriques e seus companheiros de garimpagem de ouro de aluvião. (Crédito: J.J.Tschudi).

Foto de capa: Escravos garimpam ouro para Manuel Henriques e seus companheiros de garimpagem de ouro de aluvião. (Crédito: J.J.Tschudi).

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
(“Navio Negreiro”, Castro Alves)

O garimpeiro Manuel Henriques, o Mão de Luva, fundador da comunidade El-Rey, transformada em Novas Minas do Canta Gallo, em 1787, viveu durante o sistema escravocrata. Não havia trabalho remunerado. Os escravocratas vendiam e compravam escravos, trazidos pela Coroa Portuguesa mediante sequestro de seres humanos nas tribos ou países africanos. Muitos reis, rainhas, princesas e príncipes em seus países ou tribos de origem viravam escravos de um dia para o outro. Mas vinha também pessoas que já eram escravos na África.

Os portugueses tentaram, sem êxito, escravizar os nativos, quando chegaram ao Brasil, por erro de navegação. Eles não descobriram nada. O território rebatizado de Brasil já existia há milênios. Cabral queria ir para as Índias, mas veio para os índios. Um enorme erro de navegação, mas um insignificante erro gráfico…

Em sua dissertação de mestrado, aprovado pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Rodrigo Leonardo de Souza Oliveira, com base em documentos dos arquivos de Minas Gerais, afirma que o garimpeiro Manuel Henriques, um bom estrategista, dividiu o grupo dele em companhias. Cada garimpeiro do grupo era designado para uma espécie de empresa ou companhia. O ouro obtido no garimpo era dividido segundo o número de escravos que cada oficial tivesse em sua companhia. Inicialmente, eram 23 escravos.

Eles construíram a vila, com casas de pau a pique, sob a orientação e observação dos chefes de companhia. A mata atlântica era farta em madeira e à beira do córrego que até hoje corta a cidade de Cantagalo, à época, conhecido como “Mão de Luva”, exista farto vegetal para cobrir os telhados, as palhas de sapê.

 

Mão de Luva confere ouro garimpado por dois escravos (Criação do escultor cantagalense Honório Peçanha)
Mão de Luva confere ouro garimpado por dois escravos (Criação do escultor cantagalense Honório Peçanha)

 

Quando a comunidade de El-Rey foi invadida pelas tropas de Minas Gerais, foram encontrados e presos, na noite do 13 de maio de 1786, 24 escravos, listados por São Martinho em seu relatório. Todos foram presos e levados para as Minas Gerais. Eles merecem o destaque, por serem os primeiros construtores de Cantagalo, até agora anônimos (ordem alfabética): Antônio Conga, Antônio Congo, Antônio Munjolo, Caetano Benguella, Domingos Banguella, Domingos Angola, Felipe Banguella, Francisco Congo, Francisco Rebolo, Gonçalo Angola, João Banguella, João Cabunda, João Crioulo, João Rebolo, João Rebolo, Joaquim Mina, José Angola, José Cabunda, Manoel Benguella, Manoel Mina, Matheus Rebolo, Pedro Congo, Vicente Crioulo, Xavier Cabunda.

Destruída a comunidade de El-Rey, em 1786, D. Luís de Vasconcelos e Souza iniciou, de imediato, providências para distribuir “datas” ou sesmarias na região antes comandada por Manuel Henriques. Assumiu, provisoriamente, a gestão das Novas Minas do Canta Gallo, o coronel Manoel Soares Coimbra, até a chegada ao local do capitão Francisco Duarte Malha, nomeado para administrar o distrito. A fim de controlar a extração do ouro, criou o vice-rei a Casa do Registro.

Mas a escravidão continuou. Outros escravos foram chegando nas décadas seguintes, aos milhares, trabalhando no garimpo do ouro de aluvião ou na agricultura do café e agropecuária, nas “datas ou sesmarias”.

Os candidatos às sesmarias deveriam ter uma boa quantidade de escravos, como sinônimo de riqueza. Somente o Conde de Nova Friburgo, Clemente Pinto, acumulou cerca de vinte fazendas em Cantagalo, ao lado de seu filho, o Barão de Cantagalo, Bernardo Clemente Pinto Sobrinho, uma família que dominou a zona rural e o município de Cantagalo por décadas. Somente os Clementes, devem ter usado, em suas dezenas de fazendas, milhares de escravos, que não têm seus nomes gravados na história de nosso Município.

 

Conde de Nova Friburgo. Clemente Pinto, imigrante português que, em Nova Friburgo, construiu um império tendo como suporte o trabalho escravo. Ele e seus herdeiros possuíam dezenas de escravos na região de Cantagalo. (Crédito: A Voz do Povo, Nova Friburgo).
Conde de Nova Friburgo. Clemente Pinto, imigrante português que, em Nova Friburgo, construiu um império tendo como suporte o trabalho escravo. Ele e seus herdeiros possuíam dezenas de escravos na região de Cantagalo. (Crédito: A Voz do Povo, Nova Friburgo).

 

A abolição da escravatura, determinada por D. Pedro II, ocorreu somente em 13 de maio de 1888, por meio da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel. Foram cerca de quatrocentos anos de escravidão em nosso país. Mesmo assim, a escravidão, legalmente, foi gradual e controlada pela Coroa, destacando-se a Lei Eusébio Queirós, de 1850, que proibiu a tráfico negreiro da África para o Brasil; a Lei do Ventre Livre, de 1871, que estabeleceu a liberdade para os filhos de escravos que nasciam após essa data; e a Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotegipe, que beneficiou os negros maiores de sessenta anos.

Lamentavelmente a escravidão não acabou. Em pleno século 21, na Nova Era, ou Era Digital, têm sido encontrados guetos de escravos de diversas origens, envolvendo bolivianos, venezuelanos e brasileiros abaixo da linha da pobreza. O rigor contra esse tipo de crime deve ser aumentado. Não podemos continuar com esse crime impune, que renega e descumpre o universal Código dos Direitos Humanos.

Respondamos nós, com atitudes, a indagação do Poeta dos Escravos:

Se eu deliro… ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!

 

Celso Frauches é escritor, jornalista, historiador, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Mão de Luva.
Celso Frauches é escritor, jornalista, historiador, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Mão de Luva.

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