“Euclides: o esquecido”, por Celso Frauches

Eu não tenho vocação para a espada, a arma que eu sei manejar é a pena.
(Euclides da Cunha)

No final de 2020, quando mudei em definitivo minha residência para Cantagalo, encontrei a Casa de Euclides da Cunha abandonada completamente. Todavia, isso não era novidade para mim.

De longe, em Brasília, sempre acompanhei o desenvolvimento socioeconômico, as letras e a cultura de Cantagalo pelo Jornal da Região, que o amigo Célio Figueiredo me enviava semanalmente. Com a edição digital, as notícias e os artigos chegavam mais rápidos. Via notícias sobre a Casa de Euclides da Cunha e ficava desolado. O periódico digital Serra News RJ também noticiava sobre o descaso do governo estadual, proprietário da Casa, dedicando reportagens sobre o assunto, com a pesquisadora e escritora Janaina Botelho.

Amélia Thomaz, uma guerreira pela vida e história de Euclides da Cunha
Amélia Thomaz, uma guerreira pela vida e história de Euclides da Cunha

Em Brasília, estava envolvido com as minhas atividades profissionais e, confesso, não dedicava, à distância, algum tempo para tentar articular o renascimento da Semana Euclidiana de Cantagalo, independente da Casa de Euclides da Cunha.

No dia 20 de janeiro de 2021, Euclides da Cunha completou 155 anos de história.

São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, que adotou Euclides da Cunha como seu filho, realizou a 83ª Semana Euclidiana para explorar mais um aspecto importante na vida desse notável escritor cantagalense: Euclides e os rios. São 83 anos ininterruptos dedicados à vida e à história do escritor e sua produção jornalística e literária na cidade de São José do Rio Pardo (SP), onde a sociedade civil local participa ativamente da realização da Semana Euclidiana, com o apoio das autoridades.

Fachada da Casa de Euclides da Cunha mostrada pela Funarj em seu portal na internet.
Fachada da Casa de Euclides da Cunha mostrada pela Funarj em seu portal na internet.

Em Cantagalo, a Casa de Euclides da Cunha continua fechada, sob a administração da Funarj, entidade do governo do Estado do Rio de Janeiro, responsável pela promoção da cultura, com o “maior complexo de espaços culturais do estado”, segundo o seu portal na internet.

Recém-chegado de Canudos, Euclides foi para São José do Rio Pardo para construir uma ponte sobre o rio que empresta o seu nome ao município. À beira do rio, edificou uma cabana para administrar as obras. Ali escreveu grande parte de Os Sertões. Essa cabana é preservada até hoje, sendo coberta por uma redoma de vidro.

Casa de Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo (SP)
Casa de Euclides da Cunha em São José do Rio Pardo (SP)

Em 1964, fui conhecer a Semana Euclidiana de São José do Rio Pardo, levado pelo meu amigo, primo e afilhado Heleno Coelho Medeiros. O prefeito de então, Henrique Frauches, com o apoio dos intelectuais locais, à frente a professora, poeta e escritora Amélia Thomaz, acalentava o projeto de criar, em Cantagalo, o Museu Euclides da Cunha. Eu fui ver como era a organização do evento e obter a legislação e normas que culminaram com a criação da Casa de Euclides da Cunha, naquele município paulista.

Com o apoio incondicional do cantagalense Lizt Sá Vieira, o prefeito conseguiu encaminhar o pleito ao então governador Paulo Torres, também natural de Cantagalo. Após longas negociações, finalmente, chegou-se à criação do Colégio Maria Zulmira Torres, tendo como anexo a Casa de Euclides da Cunha, implantados em 1965. Logo em seguida, com a conclusão do mandato de meu pai, regressei a Niterói para continuar minha atuação como funcionário da Assembleia Legislativa do antigo Estado do Rio de Janeiro. Infelizmente, as minhas atividades na Alerj e na Universidade Grande Rio Prof. José de Souza Herdy – outro cantagalense -, mantida pela Associação Fluminense de Educação, em Duque de Caxias, consumiram grande parte da minha vida, ao lado da minha família.

Visão interna da Casa de Euclides da Cunha
Visão interna da Casa de Euclides da Cunha

O vereador Matheus Câmara, da Juventude Euclidiana, em 2020, quando era assessor de Cultura, afirmou que o “Estado abandona Casa de Euclides da Cunha há 10 anos em Cantagalo” e que o “espaço representa o único centro cultural do município”. Como vereador, eleito em 2020, Matheus continua lutando para a reabertura dessa casa de cultura, importante para Cantagalo e para o estudo e pesquisa sobre a obra do escritor cantagalense.

Em 2021, o então coordenador de museus da Funarj, Douglas Fasolato, havia informado que o local estava em processo de reabertura. “O espaço está em processo de reorganização administrativa e conceitual para que possa cumprir seu papel de destaque na região de Cantagalo”, disse na ocasião. Ledo engano.

Se o leitor acessar o portal da Funarj na internet vai encontrar, sob o título “Um centro cultural, único em sua região, dedicado ao autor de Os Sertões, Euclides da Cunha”, com uma bela foto e histórico da Casa de Euclides da Cunha, sem informar que ela não funciona há mais de dez anos porque essa fundação não cumpre as suas responsabilidades institucionais.

Euclides da Cunha, caricatura, por Sonia Mota (https://br.pinterest.com/soniamot/)
Euclides da Cunha, caricatura, por Sonia Mota (https://br.pinterest.com/soniamot/)

Nesse espaço, disponibilizado pela Internet, o prezado leitor vai encontrar as seguintes informações, que indicam que a Casa de Euclides está funcionando normalmente, o que não é verdade:

“O acervo da Casa de Euclides da Cunha é formado por reproduções de documentos, desenhos e peças ligadas à vida e obra do escritor, além da primeira edição dos livros ‘Os Sertões’ e ‘Contrastes e Confrontos’”.

“A casa também possui uma curiosidade de Euclides: o encéfalo do autor. Ele foi guardado, inicialmente, para a realização de pesquisas, já que o funcionamento desta região do cérebro ainda é um mistério para os cientistas. Hoje, ele se encontra em um túmulo, na Casa de Euclides da Cunha”.

“O visitante também tem acesso a uma biblioteca extensa, com cerca de 3 mil obras, dentre elas: literárias (nacionais e estrangeiras); didáticas, sobre diversos assuntos; além de publicações que analisam e interpretam Euclides e sua obra. Construída a partir do acervo original do engenheiro, contendo material usado em Canudos e primeiras edições de seus livros, a biblioteca cresceu através de doações, inclusive da família do jornalista”.

O centro cultural com o acervo de Euclides da Cunha estava recebendo estímulos e cuidados da Prefeitura de Cantagalo, que não renovou o Termo de Cooperação com a Funarj. O Governo do Estado é o responsável direto pelos cuidados desse centro cultural.

Celso Frauches
Celso Frauches é escritor, jornalista, já foi secretário Municipal em Cantagalo e é presidente do Instituto Mão de Luva.

Em janeiro deste ano, recebemos, no Instituto Mão de Luva, a visita do prefeito Guga de Paula, nosso amigo desde os tempos em que seu pai, Wilder Paula, ocupou o cargo de Prefeito pela primeira vez. Aproveitamos a oportunidade para entrevistá-lo para o programa “Diálogos”, da TV Interior. Uma das perguntas foi: “Como está a reabertura da Casa de Euclides da Cunha?”. A resposta foi detalhada e precisa, mas pode ser resumida. Disse o Prefeito que a Funarj só deseja transferir para a Prefeitura a manutenção, a administração e as demais despesas, contudo, não transfere o imóvel. Guga tem razão. Como pode a Prefeitura administrar um imóvel que não é de sua propriedade? Como poderá fazer obras de reparos e ampliação? Penso que a Funarj quer se ver livre dos investimentos e das despesas de custeio, mas sem qualquer responsabilidade com o real funcionamento adequado desse centro cultural, único no Estado do Rio, dedicado ao cantagalense, autor da monumental obra Os Sertões.

Converso periodicamente com o vereador Matheus Lucas de Arruda Câmara. Ele continua lutando para a reabertura da Casa, mas até agora sem qualquer perspectiva de funcionamento real.

Há quase 10 anos, a Casa de Euclides da Cunha segue fechada no município e deixa de compartilhar com moradores, visitantes e turistas, as histórias, memórias e um vasto acervo sobre a vida do ilustre escritor cantagalense, considerado uma das personalidades mais importantes da literatura brasileira e mundial.

Essa novela continua. O seu fim é uma incógnita, diante da irresponsabilidade da Funarj.

Euclides era um gênio, pois, além de suas grandes e mais reconhecidas obras, foi também poeta. Quem diria? E que diria seu coração de poeta, de artista que sabia manejar, não uma arma, mas a pena, diante de tanta indiferença por sua memória?

Celso Frauches é escritor, jornalista, já foi secretário Municipal em Cantagalo e é presidente do Instituto Mão de Luva.

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