Jovem friburguense é campeão mundial no World Pro Jiu-Jitsu, em Abu Dhabi
Casa de Caridade – 1922
Aos doze dias de agosto de 1965, retornei para Cantagalo, depois de ser aprovado em um concurso de títulos organizado pela Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Deixei um emprego de médico efetivo da Secretaria de Saúde do Estado da Guanabara, lotado no Hospital Universitário Pedro Ernesto, onde trabalhei durante cinco anos. Não me arrependo até hoje!
Passei a trabalhar no Hospital de Cantagalo, onde o Sr. Diavolasse de Oliveira Reis (Sr. Zinho Barbeiro) era o Provedor e Dr. Carvalho Junior, o Diretor Médico; tendo como companheiros no Corpo Clínico os colegas: Dr. José Cavalcante de Oliveira, médico antigo e experiente em Cirurgia Geral, Obstetrícia e Traumatologia, oriundo do estado de Alagoas; Dr. Nilo Teixeira Rodrigues, Psiquiatra e Clínico Geral; e Dr. João Nicolau Guzzo, Pediatra e Anestesista; os dois últimos nascidos em Cantagalo.
O que mais despertou minha atenção foi o pequeno número de funcionários da Casa de Caridade de Cantagalo. Havia um casal, Manoel Felippe de Jesus e Therezinha de Jesus Felippe de Jesus, Da. Laura Maria Winther, Quinha, Da. Tina e o Luiz.
O casal acima citado residia em uma casa antiga anexa ao hospital, com seus seus cinco filhos, criando mais dois meninos. O Sr. Manoel Felippe era o zelador do hospital e encarregado pela esterilização de todo material cirúrgico, o que fazia com grande responsabilidade e competência.
O hospital só possuía uma caixa de material cirúrgico que no início era suficiente, em virtude do pequeno movimento do centro cirúrgico. Com o crescimento das internações, havia, em alguns dias, dois pacientes para serem operados. Então o Sr. Manoel Felippe dizia ao médico: “Dr, opere primeiro o que está pior. Depois, eu limpo e esterilizo o material para a outra cirurgia”. E assim acontecia. Depois o Provedor comprou outra caixa de material cirúrgico.
O que mais apreciava no Sr. Manoel Felippe era sua boa vontade em servir ao hospital. Jamais vi o Sr. Manoel contrariado ou com a fisionomia aborrecida. Algumas vezes, era chamado duas ou três vezes pela madrugada, comparecendo sempre com a fisionomia tranquila. Era, também, encarregado de cuidar dos falecidos no hospital. Mantinha no terreno da instituição filantrópica um ótimo pomar, uma horta e uma grande plantação de inhame.
Com grande sacrifício e trabalho, o Sr. Manoel Felippe e esposa compraram um lote na rua Profa. Dulce Barros Lutterbach, onde construíram sua residência.
O Sr. Manoel Felippe me contava que foi criado na zona rural de Cantagalo; depois de adulto passou a trabalhar na firma do consagrado construtor português Sr. David da Costa Lage, responsável pela construção da parte frontal da Casa de Caridade de Cantagalo. Nesse período, quando o Dr. Carvalho necessitava de alguém para auxiliá-lo em algumas cirurgias, chamava o jovem Manoel Felippe; este imediatamente tomava um banho e comparecia. Terminada a construção, o Dr. Carvalho sugeriu ao Provedor Diavolasse de Oliveira Reis que aproveitasse o Manoel como funcionário do hospital em virtude de suas habilidades. Assim foi feito.
No final da década de 60, Dr. João Guzzo, que era médico legista da região, conseguiu um contrato de auxiliar de necropsias para o Manoel, que mesmo assim não abandonou suas múltiplas atividades hospitalares.
Infelizmente, todo ser vivo um dia desaparece, o que aconteceu com meu amigo Manoel Felippe de Jesus, que um dia faleceu no Hospital de Bom Jardim, vítima de uma insuficiência renal crônica.
Sua esposa, Sra. Therezinha de Jesus Felippe de Jesus, como eu costumava lhe dizer “era uma pessoa abençoada, com Jesus duas vezes no nome”, foi sua fiel companheira, no lar, na criação dos filhos, e no hospital onde trabalhou durante muitos anos, até a aposentadoria, como enfermeira prática. Cuidava carinhosamente dos pacientes e sabia acompanhar um trabalho de parto com grande competência, chamando o médico no momento do nascimento ou se percebesse algum risco para o feto.
Quando o médico não chegava a tempo, ela mesmo fazia o parto e prestava a primeira assistência ao recém-nascido. Era, como se dizia na época, uma excelente parteira.
A outra enfermeira prática era Da. Laura Maria Winther, viera de Nova Friburgo, creio que contratada na época em que Dr. Chamberlain Noé trabalhou em Cantagalo. Da. Laura, no início de sua vida profissional, aprendeu a trabalhar na Casa de Saúde do Dr. Mario Sertã, médico competente e de hábitos rígidos, que se imortalizou em Nova Friburgo como médico e como desportista, presidindo o Friburgo F.C. durante muitos anos.
Da. Laura Maria Winther, de origem alemã e discípula da rigidez do Dr. Mário Sertã, parecia mais um soldado alemão disciplinado; não permitia falhas no serviço e quando percebia alguma coisa errada ficava vermelha como um tomate, parecendo que ia explodir e falava com a voz embargada.
As duas enfermeiras trabalhavam em dias alternados, mas quando ocorria um parto ou uma cirurgia a outra era chamada, ficando uma na sala de cirurgia e a outra cuidando dos pacientes internados.
Eram escravas do trabalho e só conseguiram superar esse sistema terrível graças à dedicação e ao amor ao próximo. Muitos que permaneceram vivos e curados devem a esses dois verdadeiros anjos da guarda que atuaram na Casa de Caridade de Cantagalo até o momento das aposentadorias.
Da. Laura se casou com o cantagalense Luiz Ribeiro, funcionário da Cerj; do matrimônio resultaram dois filhos: Sônia Regina, já falecida, e Jorge Luiz.
O casal, com muita luta, também conseguiu comprar um lote na rua Profa. Dulce Barros Lutterbach e construir sua casa. Antes da obra, o terreno era irregular, sendo corrigido com o trabalho braçal do casal. Da. Laura, no hospital, mostrava os calos das mãos. Foram uns heróis.
A responsável pela cozinha era uma preta gorda, simpática, risonha, bondosa e educada, que trabalhava diariamente, Da. Quinha, também falecida, mas que deixou saudade em todos que a conheceram.
Toda roupa do hospital era lavada em um antigo tanque de pedra que existia no pomar do hospital; água abundante, nascida na fazenda do Gavião, doada ao hospital pelo seu proprietário, Dr. Pedro Pitta Filho. A lavadeira era Da. Tina (Celestina), mulata clara, quase branca, alta e forte, mas já com os cabelos grisalhos, usando sempre um lenço na cabeça. Seu pesado trabalho era impecável!
Outro membro dessa pequena equipe de trabalho era o Luiz; jovem branco, educado, era o faxineiro, que não gostava de varrer debaixo das camas, o que gerava brigas com a rígida Da. Laura e reclamações da minha parte junto ao zelador Sr. Manoel Felippe, que sempre encontrava uma solução para os problemas.
Se havia mais algum funcionário, peço perdão pela falha de memória. Hoje, 57 anos depois, o Hospital de Cantagalo cresceu fisicamente, o número de pacientes atendidos é muito maior, o mesmo acontecendo com o Corpo Clínico; é um nosocômio com características regionais, com grande valor social, empregando 180 pessoas, mas é importante que esse pequeno núcleo de funcionários homenageado hoje por mim, permaneça bem vivo em nossa memória, pois, durante longo tempo, com muito sacrifício, competência e amor, constituiu as colunas que sustentaram a Casa de Caridade de Cantagalo, hoje Hospital de Cantagalo.
Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.