“Herói Desconhecido”, por Dr Júlio Carvalho

No dia 12 de agosto de 1965, depois de trabalhar cinco anos no H. U. Pedro Ernesto, na cidade do Rio de Janeiro, retornei a Cantagalo, passando a trabalhar na Casa de Caridade de Cantagalo, onde existiam apenas seis funcionários, sob o comando de um senhor de meia-idade que acumulava diversas funções simultaneamente.

Já o conhecia de nome e de vista, todavia o contato pessoal era inicial. Percebi, no início, que o mesmo estava sempre bem-humorado, possuindo grande domínio sobre o seu temperamento, jamais perdendo o controle emocional. Morava em um casarão antigo atrás do hospital com sua esposa e cinco filhos pequenos, estando pronto a atender as necessidades do hospital durante as vinte e quatro horas do dia e os trezentos e sessenta e cinco dias de cada ano. Não tirava férias.

Sua função oficial era de zelador do hospital, atividade que compreendia supervisionar a limpeza, a alimentação, a rouparia, as compras de medicamentos e de gêneros alimentícios, dar banho nos doentes do sexo masculino que chegavam ao hospital em mau estado de higiene, cuidar dos falecidos até a chegada dos familiares, guardar as pequenas rendas do hospital e ser o elo entre tudo que ocorresse naquela casa e o provedor da mesma, Sr. Diavolasse de Oliveira Reis.

Além dessas múltiplas funções citadas, o zelador ainda tinha mais três atividades sob sua responsabilidade: energia elétrica, cuidar de alguns doentes e a esterilização de todo material cirúrgico do hospital.

Naquele tempo, o hospital não possuía gerador elétrico. Na sala de cirurgia, havia um foco de emergência com uma possante bateria que permanecia permanentemente carregada para ser usada quando faltasse energia elétrica. O responsável era o zelador.

Algumas vezes, chegava algum doente da zona rural com feridas infectadas, repletas de larvas de moscas (bicheiras). Esses doentes eram colocados no isolamento e o zelador cuidava das feridas, usando um pó amarelo de nome iodofórmio, diariamente. As larvas eram mortas e a ferida limpa.

Todo material cirúrgico era esterilizado com perfeição no autoclave pelo zelador. Jamais ocorreu uma infecção por falha na esterilização. Graças a essa atividade do zelador, pude conhecer melhor sua história.

Outrora, o hospital só possuía uma caixa de material cirúrgico, suficiente para atender o pequeno número de cirurgias realizadas. Com o passar do tempo, o número de cirurgias cresceu, ocorrendo, algumas noites, duas cirurgias de urgência. Como proceder se havia só uma caixa de material cirúrgico?

O zelador, sempre solícito, dizia: “Doutor, opere um, depois eu esterilizarei o material que, dentro de uma hora, estará pronto”. E assim procedia. Nessas esperas, mantínhamos diversos diálogos: sobre as carências do hospital, sobre o Flamengo, sobre o aumento do movimento hospitalar, sobre política municipal, etc. Numa dessas noites, ele me contou sua história.

Era cantagalense, nascido na fazenda da Samambaia, foi sempre pobre e não pode estudar por falta de escolas na zona rural. Depois de adulto, foi trabalhar na região da Chave do Vaz, na fazenda do seu cunhado Altair Vieira. Do outro lado do Rio Negro, era a fazenda do seu Carvalho. No período da fabricação da rapadura, atravessava o rio e ia trabalhar na moenda movida por animais.

Mais tarde, veio para a cidade trabalhando como servente de pedreiro, onde aprendeu muita coisa, já fazendo alguns serviços de pedreiro, de elétrica e hidráulica.

Quando seu David da Costa Lage foi construir a parte frontal da Casa de Caridade de Cantagalo, ele foi na equipe. Nessa época, quando o Dr. Carvalho, que o conhecia da zona rural, ia fazer alguma cirurgia de urgência, chamava o servente de pedreiro, mandando que ele tomasse um banho rápido e fosse ajudá-lo na cirurgia (apendicites, amputações, ferimentos maiores, etc.).

Terminada a obra do hospital, Dr. Carvalho sugeriu que o Provedor contratasse o servente de pedreiro para zelador do hospital em virtude de seus múltiplos conhecimentos. Assim foi feito.

Depois de me contar essa bela história, o zelador concluiu: “Assim, trabalhei com seu avô, com seu pai e com o senhor”. Se já gostava do zelador pelo seu ótimo trabalho, passei a admirá-lo mais ainda!

Durante muitos anos, viveu com a família em uma antiga casa atrás do hospital. Depois, com muito sacrifício, conseguiu um lote a cem metros do hospital, ali construindo sua residência, onde foi habitar com a esposa e os filhos.

Em 1970, o médico legista Dr. João Nicolau Guzzo conseguiu nomeá-lo auxiliar de necropsias para uma vasta região geográfica fluminense, que compreendia oito municípios. Era um trabalho árduo e desagradável que consistia em abrir e suturar os cadáveres; alguns já em estado de putrefação.

Infelizmente, no ano de 1987, o zelador foi acometido de uma insuficiência renal, falecendo no Hospital de Bom Jardim e sendo sepultado no cemitério de Cantagalo, deixando muita saudade entre os médicos, funcionários do Hospital de Cantagalo e amigos que ele sempre serviu com tanto carinho e bondade.

Seu nome era Manoel Felipp de Jesus, ser humano que viveu para a esposa, a Enf. Therezinha Felipp de Jesus, para seus filhos e para a Casa de Caridade de Cantagalo (hoje, Hospital de Cantagalo).

Pelo seu trabalho, recebeu duas merecidas homenagens em nossa terra:

1º – Seu nome está imortalizado na quadra de areia na rua Prof. Arthur Nunes, defronte ao D.E.R. – RJ.

2º – No salão nobre do Hospital de Cantagalo, foi colocado o seu retrato na galeria dos benfeitores da instituição, pelo belo e difícil trabalho por ele realizado durante tantos anos, em tempo integral.

Sua alma deve estar guardada entre os eleitos, pois, como disse o Grande Mestre: “Vinde, benditos do meu Pai! Recebei em herança o Reino que meu Pai vos preparou desde a criação do mundo! Pois eu estava com fome, e me destes de comer; estava com sede, e me destes de beber; eu era forasteiro, e me recebestes em casa; estava nu e me vestistes; doente, e cuidastes de mim; na prisão, e fostes me visitar”.

 

Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.
Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.

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