“Juiz de garantias”, por Amanda de Moraes

Juiz de garantias

Juiz de garantias

Gostaria ser tão bonita quanto minha mãe pensa que eu sou.” Acredito que esse seja um pensamento unânime. Tudo bem ser generalista, na oralidade.

A maternidade carrega o parcial. Genitoras são apaixonadas por seus filhos, defendem-nos como leoas, até em momentos em que a razão exige diferente. O comprometimento com o rebento é de tal ordem que, frequentemente, fantasiam virtudes, “colocam panos quentes” sob as falhas e possuem a íntima convicção de ser o serzinho por elas criado mais especial do que os 8 bilhões de seres humanos na Terra. E ai de quem se atrever a contrariá-las.
Às mães o mundo concede licença poética para serem parciais. No entanto, essa qualidade não pode estar disponível quando adentra campos estruturais de um Estado.

A toda pessoa acusada, a Constituição Federal (artigo 5º, incisos XXXVII e LIII) e o Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8.1) asseguram o direito de ser julgada por um magistrado imparcial.

A imparcialidade de um juiz é pressuposto de validade do processo. Não é necessário grande conhecimento jurídico para imaginar os males que um juiz contaminado psicologicamente pode ocasionar, quando pintam um autorretrato de salvadores de alguma coisa. Nessas hipóteses, o processo penal dá lugar a uma verdadeira cruzada, em nome de valores, costumes e conceitos, os quais colidem de frente com o correto exercício da jurisdição.

Imaginemos um julgador apaixonado por determinado partido político que, sem submeter as emoções à razão, é responsável por analisar uma acusação contra um partido opositor, ou, ainda, que se submeta facilmente ao clamor popular. Estará esse magistrado apto a analisar, sem comprometimento, as provas?

Não é por acaso que os sujeitos de um processo são distintos: juiz e as partes (acusação e defesa). Ao primeiro, cabe prolatar o seu convencimento sobre o que os outros dois sujeitos (parciais) alegaram, de quem quer que seja o acusado ou o delito a ele imputado.

Para além, saibamos: esse pressuposto não “cai do céu”. Não é por vestir a capa que o manto da imparcialidade recai sob o julgador, como benção espiritual concedida aos que detêm tão nobre função. Somos todos humanos; tal condição deságua, naturalmente, em tendências psicológicas, quando há contato com fatos que afloram convencimentos em nossa mente. Se há a possibilidade de criar mecanismos que auxiliem a alcançar tão caro pressuposto, por que não?

Na quinta-feira passada (17 de agosto), o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu pela implantação obrigatória do Juiz das Garantias, em patamar nacional. O Ministro Nunes Marques, no julgamento, ponderou ser a maior mudança no Processo Penal brasileiro desde o advento do Código de Processo Penal de 1941.

O esclarecimento de um fato, a princípio, criminoso, passa, usualmente, por duas etapas: investigação (inquérito policial) e ação penal (debates orais, inquirição de testemunhas pelas partes, maior participação defensiva).

O nosso ordenamento jurídico, antes da Lei 13.964/2019, previa que o juiz que tivesse contato com a fase de investigação e decretasse medidas invasivas, de cunho investigatório, como interceptação telefônica, medida cautelar de busca e apreensão ou, até mesmo, prisão cautelar, fosse o mesmo a julgar o caso, após o Ministério Público oferecer a denúncia em desfavor do investigado.

Esse contato inicial tem forte influência na percepção do magistrado sobre aquele envolvido, fazendo com que acabe por confirmar, mesmo após os intensos debates de uma audiência de instrução e julgamento, a tendência exposta pela linha investigativa.

Em termos diretos – com a implementação do Juiz das Garantias, um magistrado passará a atuar somente na fase de investigação, sendo a instrução processual designada a juiz diverso.

À primeira vista, parece ser algo simples (e óbvio) esse projeto, que enfrentou forte resistência inquisitória, contando com calorosos debates e audiências públicas. Ele trará ganhos incalculáveis a todos os cidadãos, como já ocorre em outros países que o implementaram (Itália e Chile, por exemplo).

Nós, indivíduos, sempre estaremos sujeitos a um dia precisarmos de um advogado; lembremo-nos de que muitos, ao final do processo, são absolvidos. E assim foi feita a justiça! As investigações iniciam-se mediante uma hipótese. Direitos e garantias, quando previstos, valem para todos. E todos? Sim… pronome indefinido, com largo alcance. Sem restrições.

Não podemos controlar, de antemão, a psique dos julgadores ou como agirão ao longo de um processo. No entanto, a criação de mecanismos que visem a apoiar a imparcialidade é um marco civilizatório, que demonstra correta preocupação, em último nível, com a vida humana.

O juiz, caso carregue a preocupação da visão maternal dos mais bonitos adjetivos a seu rebento, deixará de – nesse momento – ser juiz. Ali, será um amigo a quem protege; um inimigo a quem não o faz. Justiça seja feita, somos seres emocionais, com crenças diversas. Equilibrar essa balança é uma arte para os que se dispõem a entender que a razão é o pilar ético da toga.

 

Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes
Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes

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