“Mão de Luva: a lenda – final”, por Celso Frauches

(Leia a parte 1 deste artigo no link: https://jornaldaregiao.com/mao-de-luva-a-lenda-por-celso-frauches/)

O escritor, jornalista e historiador Acácio Ferreira Dias publicou, nos idos dos anos 50, um romance histórico sobre Manoel Henriques, mais conhecido como Mão de Luva, fundador da cidade de Cantagalo, no livro O Mão de Luva – Fundador de Cantagalo. Acácio narra a trajetória de Mão de Luva em sua caminhada, passando pela Aldeia dos Coroados, “penetrando a mata fechada, à força de golpes de facão e de machados” até chegar ao que seria a aldeia de Mão de Luva e sua trupe. (*)

Estabelecido entre as montanhas que circundam a nossa cidade, Mão de Luva foi edificando cabanas, com o auxílio de seus irmãos e do trabalho escravo.

Narra Ferreira Dias sobre a chegada de Mão de Luva e seus companheiros à região dos “certões de índios bravios”, mais tarde conhecida como “Sertões de Macacu” ou Cantagalo:

 Aldeia de índios tapuios cristãos. Imagem: Johann Moritz Rugendas.
Aldeia de índios tapuios cristãos. Imagem: Johann Moritz Rugendas.

Penetrando a mata fechada, à força de golpes de facão e de machados, viram margens ponteagudas de extensa garganta, por onde as águas esprimidas se brutalizavam na nudez das massas de granito, numa carreira doida de monstros fabulosos triturando”. Embora a linguagem sugira algo grandioso, era um acidente geográfico natural a que Mão de Luva batizou de “Cachoeira do Ronca-Pau”, por suas características.

Segue, mais adiante, a narrativa do escritor Acácio:

Janeiro de 1784. Dezoito anos haviam decorrido desde que foram lançadas as bases do aldeiamento imaginado por ‘Mão de Luva’ e seus camaradas, nas cabeceiras dos Sertões de Macacú. Um sonho que se transformara em realidade, tomara vida e crescera em sua pujança”. E continua:

Nascera uma fértil povoação, utopia alcandorada que vivera do embrião como uma crisalida de ouro na alma do sertanista. A aldeia tomava vulto, se estendendo exuberante e promissora por terras fecundas, que se abriam em vastas plantações de cereais, árvores frutíferas, celeiro onde mourejavam três centenas de famílias, colônia de onde surgiria dez anos mais tarde, uma cidade de tradições brilhantes, para se tornar grande e conhecida, pelo valor de seus filhos e pela suavidade de seu ambiente […]. Havia cerca de cinquenta moradas”. Nascia a cidade de Cantagalo.

Já velho, diz o escritor, Mão de Luva governava “com sapiência e respeito” esse povoado, “disposto a defender seus direitos com armas na mão, sonhando ainda com a sua eleita, nas longínquas terras do ultramar”.

Acácio Ferreira Dias, apesar da lenda de Duque de Santo Tirso, reconhecia em Manoel Henriques as qualidades de um sertanista e garimpeiro, um empreendedor na segunda metade do século 18, que se recusava a pagar o quinto – “o quinto dos infernos” – à Coroa Portuguesa, que saqueava as riquezas minerais do Brasil, como todo colonizador, sob a governança do rei D. João VI.

Estamos chegando ao fim da colônia Mão de Luva, entre montanhas, longe das picadas abertas nos “Sertões de Macacu” para o garimpo de ouro de aluvião e seu transporte clandestino para os portos da Baía da Guanabara.

Tiradentes e São Martinho, de partida para a aldeia de Mão de Luva (Imagens concebidas por Acácio Ferreira Dias).
Tiradentes e São Martinho, de partida para a aldeia de Mão de Luva (Imagens concebidas por Acácio Ferreira Dias).

D. Luiz da Cunha Menezes, governador das Minas Gerais, convoca o sargento-mor São Martinho ao palácio para lhe dar a ordem de eliminar Mão de Luva e sua comunidade. Todavia, antes, deseja conversar com o alferes Joaquim José da Silva Xavier (Tiradentes). Este deveria “investigar se as campanhas desses sertões eram dilatadas e abundantes de matos gerais capazes de fazerem neles amplos estabelecimentos…”. Queria saber que lucros a Coroa Portuguesa podia auferir daquelas terras.

A 20 de abril de 1784, São Martinho e Tiradentes partem para os “Sertões de Macacú” para cumprirem as ordens de D. Luiz.

Em viagem, Tiradentes discorda do sargento-mor, que trata Manoel Henriques e seus companheiros como “bandoleiros, indivíduos semi-selvagens, chefiados por um bandido terrível, conhecido pelo apelido de Mão de Luva”.

O alferes, contudo, diz que o “poder real, que nos manda perseguir os garimpeiros, cominando a esses desgraçados, nossos patrícios, a pena de morte, pelourinho, açoites, confisco de bens, degredos para a India e para a Africa… Um governo que na sua vesânia de ouro, proíbe que se abram estradas, admitindo aquelas que levam o vil metal às casas de fundição. Um governo que para encher as arcas de sua Côrte dissipadora e inculta, manda trancar os rios. Parece mentira, Senhor São Martinho, mas é a desnuda realidade”. Ao tratar Manoel Henriques como “patrício”, parece que o escritor, pelas palavras do Tiradentes, reconhece a nacionalidade brasileira de Manoel Henriques. Um ato falho? Mas enfim os dois delegados de D. Luiz cumprem a sua tarefa. Simplificando: São Martinho, após renhida batalha, prende e arrebenta com a colônia de Mão Luva. As casas são incendiadas, eliminando os vestígios de um povoado rebelde à tirania portuguesa. Segundo registra o historiador, foram presos “sumariamente” os seguintes mineradores: “Manoel Henriques, por alcunha Mão de Luva, Augusto de Abreu Castelo Branco, Manoel Rodrigues, José Augusto de Lima, José da Silva Leite e seu escravo Narciso, Pedro Vieira de Menezes, Antonio Novais, Francisco Pegádo, Onofre Bernardes, José Preto e Felício Martins”. Escreve ainda: “O Sargento-Mór, deixando o anspeçada Custodio Pinheiro de Faria, no Arraial de Cantagalo, entrou em triunfo como um Cesar, em Vila Rica, trazendo os prisioneiros carregados de ferros, e os seus despojos, constituídos por duas arrobas de ouro e 26 escravos”. No povoado havia, portanto, 36 pessoas sob a liderança de Mão de Luva. Julgado, Manoel Henriques foi condenado ao “degredo perpétuo para em terras de Moçambique”, os demais foram condenados “de cinco a dez anos nas tenebrosas masmorras da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro”.

Celso Frauches
Celso Frauches

Na viagem para o degredo, Manoel Henriques fica sabendo que D. Maria, agora rainha de Portugal, estava casada há mais de vinte anos com seu tio, o Infante D. Pedro. Por vias de um monge, antes de sua morte, por tuberculose, Manoel Henriques envia para a rainha de Portugal, D. Maria I, a luva e um crucifixo. Entregue a encomenda, a Rainha entra abruptamente na sala em que os ministros, o clero e fidalgos aguardavam a sua presença. D. Maria, segundo o historiador Ferreira Dias, “alucinada, levava bem alto um crucifixo e uma luva preta” e gritava a plenos pulmões: “Vêde senhores! São relíquias de um romance desgraçado… Corre sangue deste crucifixo e desta luva preta… Uma soberana faltou a fé jurada! Não é digna da proteção de Deus! É o castigo… É o castigo… Enlouquecera a Rainha de Portugal!”.

Mas a lenda ainda persiste… Persiste? Ou vai sendo aos poucos envolvida por pesquisas e documentos que tiram o romantismo, mas buscam a realidade.

Essa história não termina aqui. Voltarei a ela na próxima semana, agora com Mão de Luva: a verdade.

Nota

Vale a pena ler na íntegra o livro do historiador Acácio Ferreira Dias, um escritor que sabe narrar suas histórias.
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(*) Todas as transcrições respeitam a grafia original.

 

Celso Frauches é escritor, jornalista, já foi secretário Municipal em Cantagalo e é presidente do Instituto Mão de Luva.

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