“Maria Fumaça”, por Celso Frauches

Fiz várias viagens no “maria fumaça”, de Niterói para Cantagalo e vice-versa. Em 1946, quando residia na Fazenda da Serra, fiz, com meu pai, uma viagem de Boa Sorte a Nova Friburgo, onde minha mãe estava hospitalizada por uma cirurgia de apêndice. Depois, a volta para Boa Sorte. Antes, fomos assistir a uma apresentação inesquecível do cantor Vicente Celestino, com seu vozeirão. Chegava a cantar sem microfone… Para uma criança nos seus dez anos de idade, foi uma aventura. Mia Gioconda, O ébrio, Luar do sertão, entre outras músicas de sucesso, à época. A letra era um canto ao amor de um pracinha brasileiro a uma italiana:

Vejamos o destino de um pracinha brasileiro
Partindo para a Itália transformou-se num guerreiro
Lá, muito distante, despontar o amor sentiu
E disse estas palavras a uma jovem quando a viu
“La mia vita oggi sei tu! (Minha vida hoje é você!) […]
Tu sarai la mia Gioconda (Você será minha Mona Lisa)

Após esse lúdico intervalo, volto ao “maria fumaça”.

Mais tarde, residindo em Niterói, fiz várias viagens de trem. Tinha que usar um jaleco branco, para que as faíscas não queimassem a roupa. Em Cachoeiras de Macacu, a Estação tinha bolinho de aipim, mariola e banana ouro, entre outras guloseimas. Uma delícia. A viagem, às vezes, era longa. Uma vez, no início dos anos 60, quando vim passar um pouco das férias em Cantagalo, para dias inesquecíveis, a viagem durou cerca de 16h. Mas valeu a pena. Final: na serra entre Cachoeiras e Friburgo, o trem tinha uma parada obrigatória, para “beber” água. Nesses momentos, geralmente, muitas pessoas – inclusive eu – desciam do trem e iam caminhando. Depois “pegavam” o trem em movimento.

Ferrovia Rio-Portela
Ferrovia Rio-Portela

Na gare da Estação de Cantagalo, era uma festa a chegada do “maria fumaça”. Lembro-me do seo Falcão (José Marinho Falcão) gerenciando tudo. Uma figura que ficou na minha “quase memória”. Era preciso tomar conta da garotada e dos passageiros.

Quando morava em Cantagalo, ia com meus pais, de vez em quando, para Portela, visitar os tios Dave e Cid e os primos e primas queridos. Em Cantagalo, reside uma dessas primas, a Marta. Em Nova Friburgo a Etelvina, o mesmo nome de minha mãe. Tem o Valcide, que era e ainda é o galã da família. E todos os demais primos/as.

Maria Fumaça saindo da Estação de Cachoeiras de Macacu
Maria Fumaça saindo da Estação de Cachoeiras de Macacu

Para quem residia na região do Porto do Tuta e do Porto Marinho, a saída para Cantagalo mais fácil era via ferroviária por Itaocara e Boa Sorte.

Até que o presidente Jânio Quadros, na sua ignorância e, possivelmente, num transe alcoólico, resolveu acabar com “os ramais ferroviários deficitários”. A ferrovia Portela-Niterói/Rio de Janeiro foi riscada do mapa ferroviário. A opção brasileira para o transporte rodoviário, tomada nos anos 60, foi desastrosa para a logística e para a nossa economia. Cantagalo, rico em minérios, foi – e é – uma das regiões mais prejudicadas por essa decisão arbitrária e equivocada. Algumas dezenas de vagões poderiam, por viagem, transportar o nosso minério com mais segurança e a custos bem inferiores.

Maria fumaça passando por Boca do Mato, entre Nova Friburgo e Cachoeiras de Macacu
Maria fumaça passando por Boca do Mato, entre Nova Friburgo e Cachoeiras de Macacu

A historiadora Janaína Botelho, no artigo “Memória da velha Maria Fumaça”, de 3 de maio de 2017, recolhido no acervo do jornal A Voz da Serra, de Nova Friburgo, informa que, “em meados do século 19, Cantagalo era um dos maiores produtores de café do Brasil Império. Antônio Clemente Pinto, o Barão de Nova Friburgo, era o mais exponencial produtor. Transportava o café em tropas de mulas, sendo um dos seus trajetos a descida pela Serra da Boa Vista, passando pela vila de Nova Friburgo. Havia grandes perdas de café no transporte feito por mulas, e por isso, o Barão de Nova Friburgo decidiu investir no que havia de mais revolucionário e moderno na época: a linha férrea. A Sociedade Anônima Estrada de Ferro Cantagalo, de sua propriedade, construiu a via férrea em três etapas: a primeira, de Porto das Caixas a Cachoeiras de Macacu; a segunda subindo a Serra da Boa Vista até alcançar a vila de Nova Friburgo e a terceira até Cantagalo, cujo ponto final foi a estação de Macuco”. O meu amigo e colega de coluna neste JR publicou, no último 31 de maio, excelente texto completo sobre essa ferrovia histórica.

O prolongamento de Cordeiro até Portela, no vizinho município de Itaocara, às margens do Rio Paraíba do Sul, foi aberto entre 1876 e 1890. Esse trecho era chamado de Ramal Férreo de Cantagalo.

Em 1890, a Leopoldina já era dona de todo o trecho, e passou a utilizar o termo Linha do Cantagalo. Esta linha foi fechada por partes: entre Cachoeiras de Macacu e Portela em 1967, enquanto o trecho inicial foi suprimido em 1973. Os trens de passageiros acabaram antes, entre 1962 e 1963, no trecho Cantagalo-Portela e, em 15 de julho de 1964, no trecho Cachoeiras de Macacu-Cantagalo. Em 1969, já não funcionava nenhum trecho.

Na nossa cidade, a antiga Estação Ferroviária foi transformada na Estação Rodoviária, além de alguns prédios novos. Nada restou da antiga Estação.

Celso Frauches
Celso Frauches

Não me lembro de desastres com o nosso “maria fumaça”. Encontrei, contudo, no Estado S. Paulo de 28 de fevereiro de 1936 – o ano em que nasci – um único registro, sob o título “Tombou a composição de trem de carga morrendo o ‘machinista’ Octavio Gomes de ‘Nictheroy’”, na Chave do Pires, entre Laranjais e Cantagalo. Só. Nada mais.

A história é rica de fatos que provam que o transporte ferroviário foi – e é – o meio de desenvolvimento de países como os EUA e grande parte da Europa. A ligação Norte/Nordeste e o “sul maravilha”, no Brasil, por exemplo, via ferrovias, seria mais econômico e efetivo, sem o cenário estúpido daquele lamaçal que ocorre todos os anos nas rodovias da região, com prejuízos insanáveis para a economia brasileira e todas as pessoas envolvidas nesse meio.

A privatização teria sido a medida mais acertada. A bitola dos trilhos poderia ser aumentada e o transporte de cargas e passageiros seria realizado com mais segurança, eficiência e eficácia. Mas os políticos, ah os políticos!…

Celso Frauches é professor, escritor, pesquisador, ex-secretário Municipal de Cantagalo e consultor Especialista em Legislação

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