“Meu Amigo Nigri”, por Júlio Carvalho

José Miguel Nigri

José Miguel Nigri

Em janeiro de 1956, depois de muito estudo nos cursos preparatórios, 980 jovens compareceram à rua Fonseca Teles, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, subiram a colina e foram prestar exame vestibular no majestoso prédio da Faculdade de Ciências Médicas. Sonho do Prof. Rolando Monteiro e de outros idealistas da área da medicina.

Publicados os resultados, 120 estavam aprovados, comparecendo eufóricos para a matrícula no curso superior na Universidade do Estado da Guanabara, Surge a primeira e grande surpresa, a diretoria estabelece que só matricularia 80, divididos em duas turmas de 40 alunos; sem qualquer comunicação anterior.

O Diretório Acadêmico Ser Alexander Fleming, chefiado pelo Presidente Vicente, paulista de São Carlos, não aceita aquela decisão e decreta greve; ou são matriculados os 120 aprovados ou ninguém se matricula.

Depois de muitas negociações, a diretoria resolve criar uma terceira turma de 40 alunos. Resolvida a situação, todos se matriculam e as aulas são iniciadas com um mês de atraso. No primeiro dia, o Prof. Bruno Alípio Lobo, titular da Cadeira de Embriologia e Histologia, declara para os alunos que a primeira parte do curso seria prejudicada em virtude da escassez de tempo.

Inicialmente não nos conhecíamos, vínhamos dos mais diversos pontos do Brasil. Predominavam os cariocas e os paulistas, seguidos dos mineiros com suas histórias sempre interessantes, principalmente o Carlão (Carlos Raimundo Tôrres), de Viçosa; doze nordestinos de diversos estados; dois catarinenses; dois amazonenses; dois mato-grossenses; dois capixabas e nove fluminenses. Os do interior do estado do Rio de Janeiro preferiam estudar na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, onde o curso era, também, de bom padrão e a cidade mais tranquila. Na turma, existiam quatro colegas nascidos em Portugal.

Histórias de vidas e sotaques diferentes, todavia um só sonho, concluir o curso médico e partir trabalhando em benefício do próximo num país com tanta desigualdade social. Paulatinamente, fomos nos conhecendo e nos enturmando de acordo com os temperamentos, as empatias, os bairros em que residíamos, etc.

Na Tijuca, da Praça Saens Peña para cima, moravam quatro colegas, viajávamos no mesmo bonde, nos conhecemos, ficamos amigos e, finalmente, formamos um grupo de estudos, principalmente a partir do terceiro ano, quando o número de matérias aumentou, sendo algumas bem pesadas e fundamentais para nossa formação médica. Eram Cristiano Guilherme Kul Leite, Fernando Adolfo Velho Wanderley, José Miguel Nigri e eu; três cariocas e um fluminense.

Com o Nigri, mantive maior contato, indo estudar algumas vezes na sua residência, no final da rua Conde de Bonfim, um casarão amplo, antigo e bem cuidado. O ponto de estudo era a sala de visitas, na frente da casa, com o Nigri sempre educadíssimo. Sua mãe nos servia um café e o colega todas as vezes me lembrava para não mexer a colher, pois o café era feito à moda árabe, com o pó no fundo da xícara.

Uma das vezes nosso estudo se alongou um pouco mais, o Nigri me pediu licença e saiu da sala. Logo depois, voltou executando no seu violino a Ave Maria de Gunot, eram 18 horas. Depois, sorrindo, me disse: “Sou judeu, mas quis lhes prestar uma homenagem nessa hora da tarde. O autor dessa música estava inspirado por Deus!”.

Em outra ocasião, fomos estudar numa varanda na parte de trás da casa, voltada para rua São Domingos, acesso para o morro do Borel. Diversos moradores, que voltavam do trabalho, cumprimentavam o Nigri, como um velho conhecido, e ele respondia de modo simpático.

O pai do Nigri, o comerciante Sr. Miguel Nigri, possuía três cadeiras cativas no Maracanã. Quando o Flamengo jogava, era comum o Nigri ligar para mim e dizer: “Júlio, eu e o Isaac, meu primo vamos ao Maracanã, tem uma cadeira sobrando, você quer ir ver o jogo do Flamengo?”. Íamos os três para o estádio.

Estávamos no quinto ano da faculdade e o Nigri não trabalhava em nenhum hospital. Certo dia, lhe disse, amigavelmente, que ele precisava frequentar algum serviço, pois estávamos perto do final do curso. Ele me disse que tinha a fisionomia de muito jovem e ficava sem jeito de ir para as enfermarias.

Na época, estagiava na Maternidade Clovis Corrêa da Costa, no Instituto Fernandes Figueira, plantão da quarta-feira. Ocorrendo uma vaga em outra equipe, não perdi tempo, dei o nome do Nigri e, no dia seguinte, o avisei dizendo-lhe: “Se você não for, ficará ruim para mim que dei o seu nome”.

Nigri foi, gostou e se tornou um excelente obstetra, chegando a livre docente da especialidade na nossa querida Faculdade de Ciências Médicas.

No sexto ano da faculdade, no Hospital Miguel Couto, tive um desentendimento verbal bem áspero com o livre docente de ORL, que substituía o Prof. David Sanson. A discussão evoluiu de tal modo que o professor resolveu não dar mais aula para nossa turma. Ao sair do hospital, disse para o Nigri: “Estava defendendo o interesse de todos que têm plantão sexta-feira e nenhum colega veio em meu auxílio”. O Nigri me respondeu: “Você tinha toda razão, mas não deveria ter argumentado daquele modo. Você deveria ter falado assim…”. Era tão educado que parecia um diplomata!

Quando terminávamos as provas, esgotados de tanto estudar até pela madrugada, Nigri seguia para a loja de seu pai, no centro do Rio de Janeiro (creio na Av. Passos), para ajudá-lo nas vendas de Natal.

No meu casamento com Letícia, em 15 de junho de 1963, o Nigri e o Rubens Galhardi enfrentaram 200 km de estrada e vieram a Cantagalo, numa demonstração de grande amizade. Chegando ao Rio, fizemos questão de convidá-lo para um jantar em um restaurante da Tijuca.

Quando completamos 50 anos de Medicina, realizamos uma grande comemoração, todos hospedados no Hotel Pestana, em Copacabana, inclusive os cariocas. Foram três dias de confraternização e de ótimas recordações.

No sábado, no final da tarde, foi celebrada uma missa na Igreja de São José, na Lagoa; o celebrante, um jovem e inteligente padre, na homilia falou sobre as belezas de 50 anos de medicina, quantos benefícios aqueles médicos realizaram aos seus semelhantes.

No final da Eucaristia, franqueou a palavra aos médicos; três ou quatro usaram o microfone, entre eles o Nigri; disse que era de religião judaica, mas que fizera questão de comparecer à missa e agradecer a Deus por todos os benefícios recebidos durante aqueles 50 anos. Assim era o amigo e colega Nigri!

Em outubro de 2023, uma turma de ex-alunos da FCM, prestou uma homenagem ao Prof. José Miguel Nigri, oferecendo-lhe uma placa de prata por seu trabalho e dedicação como mestre de obstetrícia. Justíssima homenagem!

Cerca de um mês depois, o amigo Prof. José Miguel Negri adoecia e era internado na U.T.I. de um hospital do Rio de Janeiro, onde permaneceu até o dia 22 de janeiro, vindo a falecer.

Nigri foi sempre um seguidor fiel da religião judaica, todavia jamais foi um radical, sabendo conviver e dialogar serenamente com pessoas de diversos credos. Cumpria todos os preceitos religiosos, sendo vencido apenas pelo amor, quando se casou com Jane, uma católica, todavia viveram felizes durante longos anos.

José Miguel, como sempre o chamei, foi sepultado no Cemitério Israelita Vilar dos Teles, todavia sua alma repousa entre os eleitos de Deus, de Javé ou Adonias, por tudo de bom que ele realizou pelo próximo.

Adeus amigo!

 

Nota de falecimento - José Miguel Nigri
Nota de falecimento – José Miguel Nigri

 

Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo
Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo

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2 Comentários

  • Que linda história! Gratidão por compartilhar um pouquinho sobre a história de vida do meu avô! Li num tom como se ele estivesse contando ela pra mim! Foi bem especial relembrar, pelos olhos de outra pessoa, suas características marcantes como a sua nobre educação, seu interesse em saber mais sobre a vida coletando conhecimentos diversos, sobre seu encanto pelo violino, sobre seu amor pelo próximo, e o amor e carinho recebido por todos que o conheceram. Obrigado!

  • Dr Nigri foi meu preceptor no Hospital Pedro Ernesto,pessoa adorável,
    Deus com certeza o receberá com alegria!

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