“Muares”, por Dr Júlio Carvalho

O grupo dos muares inclui os burros e as mulas, animais híbridos, resultante do cruzamento de equinos e asininos. Animais utilíssimos à espécie humana através a história. Os muares apresentam várias vantagens em relação aos equinos: alimentam-se menos e são mais resistentes fisicamente.

No Antigo Testamento, vemos o filho do rei Davi, Absalão, liderar uma rebelião contra o próprio pai. Montado numa mula, ao passar debaixo de um carvalho, fica preso pelos cabelos enquanto a mula segue em sua corrida. Pendurado no carvalho, Absalão é morto por Joab que atravessa o seu peito com três dardos, apesar das recomendações contrárias do rei Davi (2 Sm 18,15).

No Novo Testamento, José. ao seguir para Belém, a fim de cumprir o recenseamento determinado por Cesar Augusto (Lc 2.1), levava sua esposa Maria, no final da gestação, montada em um burro. São Francisco de Assis, ao criar o primeiro presépio da humanidade, coloca atrás do berço do recém-nascido uma vaca e um burro que, com o calor de seus corpos, aqueciam Jesus.

Na política os muares também são lembrados: nos Estados Unidos, o burro é o símbolo do simpático Partido Democrático, enquanto o elefante representa o conservador Partido Republicano.

Em Cantagalo, uma mula foi escolhida para simbolizar o Partido Progressista: suas orelhas na vertical representam o 11, número do partido. E tem dado sorte ao candidato!

Dom Pedro proclamou a independência numa mula, mas foi retratado num garboso corcel branco.
Dom Pedro proclamou a independência numa mula, mas foi retratado num garboso corcel branco.

No Brasil, os muares também foram importantíssimos na nossa história. Em setembro de 1822, o príncipe D. Pedro fez mais uma viagem a Santos para seus encontros amorosos com a marquesa de Santos. Ao regressar, para atravessar a Serra do Mar, vinha cavalgando uma mula, uma vez que os cavalos não tinham resistência para vencer esse obstáculo geográfico. Chegando ao Ipiranga, ao receber ordens de Lisboa, arranca dos seu chapéu as corres portuguesas e proclama a nossa independência, que já havia sido comunicada em reunião no Grande Oriente do Brasil antes da viagem a Santos.

A arte pictórica nem sempre pode acompanhar a realidade dos acontecimentos. Já imaginaram se no quadro da proclamação da independência aparecesse nosso querido príncipe luso-brasileiro com aspecto cansado, extenuado com a longa viagem, todo suado, montado numa mula esfalfada? Não ficaria bem! O pintor Pedro Américo, que deveria ser um homem inteligente, alterou toda realidade. Vestiu o príncipe com um belo uniforme imperial e o montou num garboso corcel branco. Ainda teve tempo de pintar um carro de bois na margem da estrada, na época, meio de transporte utilíssimo na região rural de nosso país.

Monumento Carro de Molas em Lages, SC, em homenagem aos tropeiros. Foto: Sandro Scheuermann
Monumento Carro de Molas em Lages, SC, em homenagem aos tropeiros. Foto: Sandro Scheuermann

No Brasil os muares foram fundamentais ao avanço de nossa fronteira para o oeste e no transporte das riquezas produzidas pelo nosso povo, dando origem, ainda, a uma figura típica, o tropeiro.

Na minha infância, até os dez anos, vivi em um sobrado que existia na rua Chapot Prevost, onde hoje está o parque infantil Maria de Lourdes Machado Vieira. Para mim e para meu irmão Maurício, era uma festa a chegada e passagem de uma tropa de mulas e burros, com quinze ou vinte animais, à frente a mula madrinha, com muitos ornamentos e vários sininhos no cabresto, que emitiam sons de múltiplas tonalidades à medida que a mula caminhava. Cada animal carregava uma bruaca com sacos de cereais, pois naquela época havia agricultura na zona rural, reinava a fartura, ninguém passava fome. Hoje, calcula-se que cerca de treze milhões de patrícios vivem em estado de fome qualitativa e quantitativa. Até quando, meu Deus, o país será tão injusto?

As tropas de mulas de Cantagalo eram uma miniatura das tropas da época do Brasil colônia e do início da nossa independência. Consta, na história, que havia uma trilha de mulas que se iniciava em Santa Catarina e chegava a Minas Gerais, e que, posteriormente, teve o seu princípio no Rio Grande do Sul, em Viamão, próximo a Porto Alegre, levando a viagem completa cerca de um ano, com paradas obrigatórias, quando a noite chegava, em pontos pré determinados, que acabaram dando origem a cidades, alguma de grande porte nos dias de hoje.

Sorocaba, no interior de São Paulo, era o ponto de entroncamento das tropas de muares. Relatam que as trilhas de mulas chegaram até o nordeste de nosso pais e a criação de muares cresceu tanto que os criadores de cavalos exigiram a elaboração de uma lei limitando a criação de mulas.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.
Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

Outra trilha era a estrada imperial que levava as riquezas de Minas Gerais para os portos do Rio de Janeiro, trazendo do litoral móveis e objetos luxuosos importados para as casas de barões e ricos proprietários rurais. O responsável pelas tropas eram os tropeiros, homens rudes e independentes, que usavam botas de cano longo protegendo-se dos ofídios e outros animais, roupas de tecido grosseiro contra a vegetação áspera das trilhas, e chapéu de aba larga contra o sol equatorial. Criaram uma nova classe social, alguns ficaram ricos com esse trabalho titânico enviando filhos para estudar na Europa.

Na fronteira com a Bolívia, foi construído o forte Príncipe da Beira, todo de pedra, onde este material é raro. Acredita-se que as pedras foram transportadas em mulas. Afirmam alguns que uma mula saudável pode transportar de 250 a 400 Kg de carga.

Como podemos ver, os muares foram elementos fundamentais no progresso do Brasil e no alargamento de nossas fronteiras para o oeste, numa época em que não havia estradas, apenas trilhas, por isso, considero profundamente injusto chamar de burro um indivíduo pouco inteligente ou grosseiro em suas relações humanas. É uma ofensa terrível aos muares que tanto ajudaram o Brasil!

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

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