“Nosso Jardim”, por Dr Júlio Carvalho

Estava com um artigo pronto sobre o nosso jardim, onde passamos parte importante de nossa existência, quando o meu caríssimo amigo Celso Frauches começou seu simpático e romântico passeio pela Praça João XIII, então preferi aguardar que ele terminasse e passei a outros temas.

Segundo a tradição oral, o jardim de Cantagalo, inicialmente, foi o pomar do 2º Barão de Cantagalo. Não sei se é verdade, mas o Barão residia bem próximo, em um casarão que depois passou a pertencer ao Sr. Felipe Abrahão.

Praça de Cantagalo, início do séc XIX
Fórum de Cantagalo, no final do século XIX. Na foto, é possível ver parte das grades de ferro que cercavam a praça.

Nos primórdios, o jardim era cercado e protegido por grades de ferro, sendo fechado, à noite, para evitar danos; até que o Prefeito Pedro Pinto da Silva, que era de Cordeiro, as retirou levando-as para o jardim que circunda a igreja Nossa Senhora da Piedade, na cidade vizinha. Assim me contou, certa vez, uma cordeirense sobrinha neta do citado cidadão. Já o Prof. Gilberto Cunha, em bem elaborado documento que me enviou, informa que as grades foram retiradas pelo prefeito Acácio Ferreira Dias. Seja qual for o prefeito, o jardim ficou com aparência mais liberal. A partir desse momento, nosso parque ficou sem proteção e ao nível do meio fio, permanecendo sempre belo, verdadeiro oásis no centro da cidade.

Durante quinze anos, o Comandante Ernane do Amaral Peixoto, que era genro do Presidente Getúlio Vargas, foi interventor do estado do Rio de Janeiro, realizando muito pouco por Cantagalo. Mediante a reclamação dos cantagalenses, resolveu construir um suntuoso prédio escolar em nossa cidade.

Além de enorme área para salas de aula e administração, havia um ginásio coberto para esportes e teatro, com galeria, para o público assistir tudo que fosse realizado no local. Externamente, em plano mais elevado, havia também ampla pátio e uma quadra para basquete.

Busto Papa João XXIII, na Praça de Cantagalo
Busto Papa João XXIII, na Praça de Cantagalo

O interventor enviou a Cantagalo o Dr. Areia Leão, creio que Secretário de Obras, para estudar com o prefeito, o local da construção, que seria cedido pela prefeitura. Como sempre, o triste problema, não havia terreno suficiente para receber a grande obra pública.

Havia, na hoje rua Maestro Joaquim Naegele, um prédio do governo estadual em ruínas, completamente abandonado, com metade do telhado caído. Não querendo perder o belo prédio escolar a ser construído pelo governo estadual, o prefeito de Cantagalo propôs a permuta desse prédio em ruinas pelo cemitério velho de Cantagalo, que não era mais usado e frequentemente tinha suas estatuetas de santos e anjos furtadas, criando problemas para a municipalidade com os herdeiros dos defuntos, quando reclamavam.

Depois de estudos o governo estadual aceitou a proposta municipal, com a condição de que a prefeitura removesse todos os túmulos e limpasse a área. O prefeito aceitou o desafio.

Os túmulos identificados, com os respectivos esqueletos, foram removidos para o cemitério municipal, enquanto as covas rasas, sem identificação, tiveram os ossos recolhidos e transferidos para a caixa de ossos do atual cemitério municipal.

Terminada a transferência do cemitério, veio uma firma construir o grande prédio escolar, surgindo uma desagradável ocorrência: à medida que perfuravam o solo para as fundações, novos esqueletos surgiam. A obra foi paralisada e o governa do estado exigiu que a prefeitura cavasse toda área com uma profundidade de dois metros. Novo desafio aceito pala prefeitura. Trabalho todo braçal, pois na época não havia máquinas.

Toda área foi cavada em 2 metros de profundidade e pirâmides de ossos encontrados. Ninguém entendeu nada, mas a explicação veio através um dos moradores mais idosos de Cantagalo, o Sr. Henrique Costa: “Durante a epidemia de febre amarela, morria tanta gente em Cantagalo que os mais ricos foram para outras cidades, ficando aqui os desprovidos de recursos financeiros. O governo estadual enviou dois médicos para Cantagalo. Pela manhã, eles visitavam as residências, encontrando algum morto, dois funcionários do município recolhiam o cadáver que era colocado em uma carrocinha movida por um burro. Quando esse veículo estava cheio era levado para o cemitério da época e sepultados em vala comum.” Daí, a grande quantidade de esqueletos encontrados.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.
Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

Era necessário levar todos esses ossos para o cemitério municipal de Cantagalo. O único meio de transporte que o município possuía era um caminhão Chevrolet, gigante tigre, que de gigante só tinha o nome. Os ossos eram colocados na caçamba do veículo para o devido transporte. Quando os funcionários colocavam excessos de ossos, alguns, com a trepidação, caiam na rua. O motorista parava, o funcionário recolhia os ossos caídos, recolocando-os no caminhão. Realmente era um espetáculo dantesco, que não agradava ao povo.

Dr. Cássio Passos Barreto (Dr. Cassinho), advogado e bom poeta, distribuía pela cidade folhetos em versos, criticando o prefeito, mas o trabalho continuava, era necessário entregar o terreno purificado para o prédio ser construído.

Quando um terreno é cavado, dizem os entendidos, que a terra rende 40%. O governo do estado exigiu que a terra solta fosse, também, removida. Onde colocá-la? Não podia haver demora. O estado poderia desistir da construção.

O prefeito pega o trem da Leopoldina, vai a Nova Friburgo, faz contato com o Prof. Kato, de origem japonesa, que lecionava desenho no Colégio Anchieta. Este vem a Cantagalo, analisa toda a situação e sugere a construção de muretas em volta do jardim, que receberia a terra do antigo cemitério. O jardim ficaria em destaque, mais elevado que a rua e nivelado. Seriam construídos caramanchões, recobertos com trepadeiras floridas. Tudo aceito, veio a planta e a obra executada pela prefeitura.

Nova tarefa para o “gigante tigre”, transportar toda terra para o jardim da cidade em pouco tempo. Supercarregado, o veículo passava pelas ruas Euclides da Cunha e Cesar Frejanes, com suas molas gemendo, penetrava no jardim pelo caramanchão perto do fórum, que é mais largo que os outros, com a finalidade de passar o caminhão, e aterrava o jardim; sendo o nivelamento realizado com trabalho braçal, na época não havia máquinas.

Outra vez o poeta e advogado Dr. Cassinho entrava em ação. Folhetos criticavam o prefeito de modo áspero, dizendo que ele não respeitava os mortos, cujos restos mortais seriam pisoteados pelos vivos no jardim da cidade. Aqui, um pequeno adendo: o prefeito era do P.S.D. e o crítico era o presidente da U.D.N., partido que jamais venceu uma eleição em Cantagalo.

Escola Municipal Lameira de Andrade
Escola Municipal Lameira de Andrade

O prédio foi inaugurado em 27 de maio de 1949, levando a construção cerca de três anos, pois até as pedras eram britadas manualmente com martelos, ganhando os britadores por latas de querosene britadas.

Quando o saudoso governador Roberto Silveira veio a Cantagalo, ao visitar o Lameira de Andrade, deixou no livro de visitas, algo que dizia: “aqui, onde outrora ouvia-se o choro da morte, hoje ouve-se os gritos e as risadas das crianças anunciando a vida”.

O prefeito da época, tão criticado por alguns em virtude da cessão do velho cemitério, era um médico que trabalhou em Cantagalo durante 44 anos, a todos atendendo sem olhar o lado financeiro, fazendo da medicina a sua religião. Seu nome rts Joaquim de Souza Carvalho Junior, Dr. Carvalho ou Dr. Carvalhinho, como alguns o chamavam carinhosamente. Homem que falava pouco e trabalhava muito. Não queria citar o seu nome por ser o meu querido pai, que pelos seus exemplos me estimulou a seguir a mesma profissão, mas é necessário que a história de Cantagalo não se perca nas brumas do tempo.

Transferindo um cemitério desativado, cedeu o terreno para a construção do prédio onde está a Escola Lameira de Andrade e embelezou o nosso jardim, cartão postal de Cantagalo. Ainda voltarei a escrever mais sobre o nosso jardim!

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

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