“O desenvolvimento de Cantagalo: os esquecidos”, por Celso Frauches

O trabalho escravo na visão de Rugendas

Estamos habituados a comemorar as datas cívicas de Cantagalo, como o 9 de março – criação da vila de São Pedro de Cantagalo – e o 2 de outubro – elevação da vila à categoria de cidade. Homenageamos as personalidades que contribuíram ou contribuem para o desenvolvimento socioeconômico de Cantagalo. Neste heroico Jornal da Região, do combativo Célio Figueiredo, ele mesmo, eu e o meu amigo e colega de coluna, Júlio Marcos de Souza Carvalho, procuramos identificar esses baluartes de nossa história de quase três séculos. Nos meus momentos de ócio criativo, quando fico “pensando com os meus botões”, ou “viajando na maionese”, ou sonhando com os meus futuros escritos, vejo nitidamente dois tipos de seres humanos, simples e trabalhadores que contribuíram para a implantação do povoado de Canta-Gallo, nos “Sertões de Macacu”: os índios e os negros vindos da distante África.

Manoel Henriques, o Mão de Luva, considerado o fundador de Cantagalo, instalou os seus comparsas nesta região por volta de 1765, obtendo o apoio dos indígenas das tribos dos Coroados, Coropós e Puris que ocupavam esta região.  Trouxe consigo seus irmãos, alguns companheiros e negros libertos e escravos. Estes foram o esteio de seu trabalho, desde a ocupação, com a construção de casas rústicas, inicialmente, e na faina diária para o garimpo do ouro de aluvião, nos rios Grande, Negro, Macacu e outros afluentes do Rio Paraíba do Sul, que banha o distrito de São Sebastião do Paraíba.

Uma imagem do trabalho escravo na região de Cantagalo sob a visão do pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), retratado em seu livro  "Voyage Pittoresque et Historique au Brésil" (Paris, 1834-1839).
Uma imagem do trabalho escravo na região de Cantagalo sob a visão do pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848), retratado em seu livro “Voyage Pittoresque et Historique au Brésil” (Paris, 1834-1839).

Quando Mão de Luva foi preso, em 1784 o povoado abrigava trinta negros, entre libertos e escravos e outros que participavam do grupo. Residiam em duzentos casas simples. Os negros, segundo Johann Moritz Rugendas, eram oriundos de Cabinda, Quiloa, Rebolo e Mina, na África. Segundo informações dos pesquisadores, Mão de Luva tinha boas relações com os índios e os escravos.

O colono Jérôme Lugon, de Valais, na Suíça, fixa-se em Cantagalo, em 1822, “onde pode alimentar a família e dedicar-se ao comércio”. Cultivava milho, feijão e café, com a ajuda de escravos.

Outro imigrante suíço, Joseph Hecht, visitou toda a região de Cantagalo e assinala a importância geográfica e econômica e os seus contrastes (HECHT, Joseph. A imigração Suíça no Brasil 1819-1823. Tradução de Armindo Müller. Nova Friburgo, RJ: s/ed., 2009, p. 23/24). Relata que os fazendeiros dormitavam em suas redes, na casa-sede das fazendas, enquanto os escravos trabalhavam desde o alvorecer até o pôr do sol. Residiam em senzalas, onde estavam diversos instrumentos de tortura. Hecht registra em seu diário:

Índios no seu fazer diário. Obra do pintor, desenhista e gravador alemão Johann Moritz Rugendas (1802/1858). Em sua visita ao Brasil, legou-nos  um importante trabalho iconográfico de paisagens e costumes brasileiros da época, registrados em seu livro "Viagem pitoresca pelo Brasil".
Índios no seu fazer diário. Obra do pintor, desenhista e gravador alemão Johann Moritz Rugendas (1802/1858). Em sua visita ao Brasil, legou-nos um importante trabalho iconográfico de paisagens e costumes brasileiros da época, registrados em seu livro “Viagem pitoresca pelo Brasil”.

Viajar na região de Cantagalo é ora triste, ora agradável. Às vezes encontram-se florestas densas, cobertas não de pinheiros, mas de árvores frondosas, formando muitos e variados bosques de belas árvores e arbustos, cheios de trilhas erradas, nas quais o caminhante bisonho pode facilmente se perder. Mais adiante, topava-se com magníficos cafezais e arrozais. […] Todas as plantações de café, cana de açúcar e arroz são feitas com o trabalho dos negros escravos; ainda que um branco ajude, mas isso acontece muito raramente. […] Os fazendeiros de Cantagalo têm colheitas suficientes o ano todo, porque as lavouras crescem e tornam a crescer o ano todo. No inverno, quando o calor não é tão grande, eles plantam as diversas hortaliças que os europeus cultivam no auge da primavera, tais como couve-rábano, nabo branco, ervilhas, batatas, que amadurecem duas vezes por ano e crescem até o tamanho ou peso de quatro quilos. Eles não plantam muito essas batatas, porque são muito doces.

Laranjas e limões crescem no mato, sem precisarem ser plantados. Em redor das casas eles têm uma centena de laranjeiras enxertadas”. Toda a produção resulta do trabalho escravo.

Esse fato aparece com destaque também na obra de outro, J. J. Tschudi, no livro Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Tradução de Afonso de E. Tunay (Rio de Janeiro: Martins, 1953).

Após a prisão de Mão de Luva e seu bando, o território foi dividido em sesmarias. Cada sesmaria seria distribuída a quem tivesse, no mínimo, 150 escravos e a obrigação de construir uma igreja. A Igreja do Santíssimo Sacramento, em sua versão original, data de 1786: uma pequenina capela, pobrezinha, de pau-a-pique. Assim foi durante meio século. A quantidade de escravos indicava o poder econômico dos brancos.

O nosso município começou a existir com o povoado de Mão de Luva, em 1765, completou, em 9 de março findo, 208 anos de fundação, por sua elevação à categoria de Vila, em 9 de março de 1814, com a denominação de São Pedro de Cantagalo. Antes, foi transformado em Distrito, integrado ao Município de Santo Antônio de Sá, por Alvará de 9 de outubro de 1806. Em 2 de outubro de 1857, a Vila foi elevada à categoria de Cidade, com o nome atual – Cantagalo.

 

Debret e Rugendas
Debret e Rugendas

 

Cantagalo sofreu várias alterações, ao longo do século 19 e a primeira metade do século 20, em sua organização administrativa, cedendo parte de sua extensa área para a criação de outros municípios, como Nova Friburgo, em 1818, para abrigar a colonização suíça, além da criação, transformação e extinção de seus distritos, até chegar à organização atual: 1º Distrito – Cantagalo; 2º Distrito – Santa Rita da Floresta; 3º Distrito – Euclidelândia; 4º Distrito – São Sebastião do Paraíba; e 5º Distrito – Boa Sorte. Durante o sombrio período da escravidão e mesmo após, os negros e seus descendentes deram contribuições significativas para o desenvolvimento socioeconômico de nosso município, desde Mão de Luva, passando pelas sesmarias e terminando com a abolição da escravatura.

Celso Frauches
Celso Frauches

As comemorações de nossas datas cívicas são importantes, por gerar oportunidades do estudo e divulgação de nossa história, além de possibilitar o debate e o diálogo sobre nossas origens, em particular, sobre a figura de Mão de Luva, a contribuição dos negros e demais pessoas que contribuíram para o desenvolvimento de Cantagalo, em todas as áreas de conhecimento e nos setores econômicos.

O nosso município não surgiu do nada. Cérebros e mãos laboriosas, desde meados do século 18, inicialmente, por meio de aventureiros e, progressivamente, com a contribuição de imigrantes portugueses, suíços e alemães e de seus descendentes, além da mão de obra de imigrantes africanos, estes, lamentavelmente, na condição de escravos. A vida e a contribuição desses pioneiros, desbravadores do interior fluminense, em condições muito precárias, devem ser reverenciadas nessas datas históricas para Cantagalo. Entre todas as personalidades já conhecidas e homenageadas, creio que estão faltando os mais humildes e anônimos – os escravos africanos. Penso que os Poderes Legislativo e Executivo de Cantagalo devem elaborar estudos para que essa homenagem seja efetivamente realizada, em uma das próximas datas comemorativas de nossa municipalidade. Uma homenagem pública, que pode ser representada por uma escultura, do anônimo escravo africano, um dos heróis esquecidos da história cantagalense.

Celso Frauches é escritor, jornalista, já foi secretário Municipal em Cantagalo e é presidente do Instituto Mão de Luva.

 

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