“O Filho do Português”, por Dr Júlio Carvalho

No artigo anterior, escrevi sobre o português (meu avô), e hoje escreverei sobre o filho do lusitano, meu querido e saudoso pai Joaquim de Souza Carvalho Junior, nascido em Cantagalo, em 06 de julho de 1898, em uma casa em que meus avós residiam no final da reta do gavião, onde a antiga estrada se bifurcava, com um ramo para Duas Barras e outro rumo à Aldeia.

Joaquim de Souza Carvalho Junior
Joaquim de Souza Carvalho Junior

Como toda criança da zona rural, nos primeiros anos de sua vida ajudava aos pais nas atividades inerentes aos que vivem nos campos. Depois de alfabetizado passou a estudar no Colégio Barros, em Cantagalo, sob a direção do Prof. Manoel Barros, cujos descendentes ainda residem em nossa cidade. Nessa época viveu na residência da sua prima Angelina Machado, cujos descendentes vivem em nossa cidade. São meus queridos primos, cujos antepassados tanto ajudaram meu pai!

Terminada essa etapa estudantil, foi aluno interno do Colégio Brasil, em Niterói, dirigido pelo Prof. João Brasil, que nomeia uma praça no vizinho município de Macuco. A seguir, prestou o que era chamado exame de suficiência no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro.

Ingressando na Faculdade Nacional da Praia Vermelha, Rio de Janeiro, terminou, em 1920, o curso de Odontologia e, em 1924, o de Medicina. Nos dois primeiros anos o curso era comum às duas profissões.

O período do curso superior não foi fácil para o aluno Carvalho Junior; seu pai com família numerosa e dispondo de poucos recursos financeiros, não podia enviar ao filho todos os recursos necessários a sua manutenção no curso superior, por essa razão, contava meu pai, que em alguns anos morou na Santa Casa de Misericórdia e, no final do curso médico, no Hospital São João Batista, que existia em Niterói. Nessas instituições recebia alimentação, tendo que retribuir com serviços nas enfermarias.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.
Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

Certa vez, ele comentou comigo, que essa vida de sacrifícios durante a faculdade foi muito bom para o seu aprendizado clínico, pois não tendo dinheiro para gastar e morando dentro dos hospitais, aproveitava os domingos e feriados para examinar os doentes nas enfermarias.

Contou-me, também, que durante o curso médico jamais pode comprar um livro, estudando nos que apanhava emprestado na biblioteca da faculdade. Seus livros só foram adquiridos depois que já estava diplomado e trabalhando como médico.
Em 1920, concluído o curso de Odontologia, esperava conseguir um emprego como dentista, que amenizasse sua situação financeira, todavia isso só ocorreu em 1924, quando estava no último ano de Medicina. Passou a ser dentista da Associação dos Empregados do Comércio, graças a um português, amigo do seu pai, que fazia parte da diretoria da citada instituição. Passou a atender no último turno da tarde, quando o comércio fechava; era o horário mais concorrido e exaustivo, que nenhum dentista gostava de trabalhar.

Certa vez, em Cantagalo, uma senhora muito idosa me contou que quando meu pai foi diplomado, meu avô batia nas casas dos conhecidos e, quando convidado a entrar, agradecia e dizia: “Hoje, vim aqui só para avisar que meu filho agora é médico. Quando você precisar chame ele”.

Fico imaginando a alegria e felicidade de meus avós portugueses que vieram para o Brasil por necessidade. Agora tinham um filho médico! Na Faculdade de Medicina entre seus professores figuravam os cantagalenses Luiz da Silva Santos, Chapot Prevost e Rodolfo Albino.

Joaquim de Souza Carvalho Junior
Joaquim de Souza Carvalho Junior

Iniciou suas atividades médicas no vizinho município de Itaocara, onde residia seu tio Manoel de Souza Carvalho, todavia em 1928, sendo nomeado médico da Estrada de Ferro Leopoldina, transferiu sua residência para Cantagalo, sua terra natal.

Em 31 de julho de 1928 casou-se com Maria das Dores Carvalho Pinheiro, descendente de duas famílias de origem mineira: Pinheiro e Vieira de Carvalho que participaram da colonização dos Sertões de Macacu, onde hoje se situa Cantagalo. Era conhecida por todos da cidade como Dª. Dorinha, foi sua fiel companheira até o final de sua vida, dedicada unicamente à família.

Durante quarenta anos exerceu a atividade de médico da Leopoldina, responsável por longo trecho que se estendia de Riograndina até Portela. Certa vez, os ferroviários fizeram um abaixo assinado à chefia médica da empresa solicitando a contratação de mais um médico para o setor, o que foi negado; todavia, depois de sua aposentadoria, o mesmo setor foi dividido entre quatro médicos, portanto, meu pai foi bastante explorado pelos ingleses, proprietários da Leopoldina!

Além de médico meu pai teve intensa atividade política e social em Cantagalo. Como político, duas vezes foi eleito vereador. De 1944 a 1946 foi o prefeito do município de Cantagalo, nomeado pelo interventor estadual Ernani do Amaral Peixoto.

Sua administração municipal se caracterizou pelo saneamento financeiro de Cantagalo, o que não ocorria antes, quando o município era administrado por pessoas estranhas procedentes de outras cidades, alguns quase não vinham ao nosso município.

No antigo prédio do CNEC, funciona hoje a Biblioteca Pública Municipal Acácio Ferreira Dias
No antigo prédio do CNEC, funciona hoje a Biblioteca Pública Municipal Acácio Ferreira Dias

Além do cuidado com as estradas vicinais e construção da primeira ponte de concreto no município (Boa Sorte – 5º distrito), realizou duas medidas ousadas: permutou o cemitério velho de Cantagalo por um prédio estadual abandonado na Praça dos Melros (hoje, João XIII). No amplo terreno do cemitério velho o governo estadual construiu o majestoso prédio da E.E. Lameira de Andrade; enquanto o prédio do centro estadual foi recuperado pela Prefeitura em parceria com os proprietários rurais; sendo instalados, posteriormente, a sede do Tiro de Guerra 119, que funcionou durante muitos anos, e uma repartição federal de assistência veterinária à zona rural. Hoje é a sede da Biblioteca Municipal Acácio Ferreira Dias.

Com o excesso de terra do cemitério velho aterrou o jardim de Cantagalo, construindo as muretas e os caramanchões floridos, que estão lá até hoje. Toda planta dessa obra foi realizada pelo Prof. Kato, que lecionava no Colégio Anchieta, em Nova Friburgo.

Até 1930 Dr. Carvalho acompanhava as orientações políticas do Dr. Júlio Santos; depois da revolução de 1930 ingressou no P.S.D. presidido durante muitos anos pelo Cel. Manoel Marcelino de Paula. Finalmente, a partir de 1946, reorganizou em Cantagalo, junto com outros políticos, o Partido Republicano.

Sempre teve intensa atividade médica, todavia nunca se negou a colaborar com as instituições cantagalenses; por mais de uma vez foi presidente da Sociedade Musical 15 de Novembro e presidente da Cooperativa Agropecuária de Cantagalo, tendo como Diretor Comercial o Sr. Abelardo Lontra.

Como médico da E.F. Leopoldina e preocupado com a falta de lazer para os seus funcionários, fundou junto com os senhores José Marinho Falcão, Miguel Mendes, Pinho e outros, um clube denominado Ferroviário F.C., que existiu durante muitos anos. Mais tarde o Ferroviário F.C. e o Cantagalense A.C. se uniram dando origem ao Cantagalo E.C. Na criação do Ferroviário F.C. seus membros escolheram a cor vermelha para as camisas como homenagem ao Dr. Carvalho torcedor do América F.C.

Casa de Caridade - 1922
Casa de Caridade – 1922 (clique para ampliar)

Mas o trabalho mais importante de Dr. Carvalho foi realizado na Casa de Caridade de Cantagalo, onde, a partir de 1930, trabalhou durante quarenta anos, recuperando a instituição em companhia de Diavolasse de Oliveira Reis (Zinho Barbeiro), Euclides Sant’Anna, Francisco Leite Teixeira, Abílio Morgado e outros. Durante muitos anos só eram internados pacientes indigentes, nada pagando pelo tratamento. Era um trabalho de puro amor ao próximo!

Durante todo sua vida meu pai se dedicou à Medicina sem qualquer ambição financeira, por vários anos era o único médico da cidade, seu consultório era sempre muito concorrido mas poucos eram os que contribuíam financeiramente.
Ao morrer, aos 69 anos de idade, deixou para a família uma residência à rua Rodolfo Albino-128 e uma propriedade rural com 90 alqueires, a quase totalidade herdada dos seus pais portugueses. Todavia a grande herança foi representada pela dedicação ao trabalho, um caráter firme, muita honestidade, competência e amor ao próximo.

Foi meu maior ídolo. Nunca me sugeriu seguir os seus passos, todavia seus exemplos diuturnos foram o farol iluminando meu caminho rumo à Medicina, pois seu trabalho de quase meio século deveria continuar em benefício daqueles que sofrem.

Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.

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