“Oratória Primorosa”, por Dr Júlio Carvalho

Credo de amor

Na semana passada escrevi sobre a família Santos, cujo patrono foi o Dr. Júlio Veríssimo da Silva Santos, mais conhecido como Dr. Júlio Santos. Família dotada de privilegiada inteligência e grande cultura, orgulho de nossa terra cantagalense. Hoje, já havia começado outro artigo, quando mudei de ideia e resolvi transcrever o discurso do Dr. Júlio Santos Filho (Dr. Julinho Santos) em 1957, por ocasião do centenário da elevação de Cantagalo à categoria de cidade, na inauguração do monumento existente ao lado do prédio da nossa prefeitura, que no ponto mais elevado tem a escultura de um galo heráldico sobre um globo com o lema “Semper vigilans”. Obra do escultor cantagalense Honório Peçanha, por ocasião do 1º governo do Sr. Henrique Luiz Frauches, eleito pelo PSD.

Ladeando o Dr. Júlio Santos, à direita dele o repórter Dalvan Lima e, à esquerda, o repórter do Grande Jornal Fluminense, Milton Loureiro.
Ladeando o Dr. Júlio Santos, à direita dele o repórter Dalvan Lima e, à esquerda, o repórter do Grande Jornal Fluminense, Milton Loureiro.

Tal discurso é de tamanha magnitude que não pode desaparecer no esquecimento; deveria ser eternizado nos arquivos dos poderes executivo e legislativo de Cantagalo, como declaração de amor à terra que nos serviu de berço e publicado em antologias da língua portuguesa. Vejamos:

“Ordenaram os chefes do Poder Executivo e do Poder Legislativo e o Grêmio dos Amigos de Cantagalo que, ao pé deste expressivo monumento, onde se alteia, Cantagalo, a sua ave legendária e está tua divisa ‘Semper Vigilans’, eu viesse a rememorar o teu passado, exaltar o teu presente e dizer da nossa fé no teu futuro promissor.

Que Deus me inspire para que, no cumprimento de missão tão alta, minha fraqueza não empane o brilho desta festa.

Relevai, senhores, a rusticidade de minha palavra, e se o que vos vou dizer não tiver a altissonância da eloquência, partirá, entretanto, do fundo do meu peito como um grito da minha alma humilde e sincera.

Creio em ti, Cantagalo, sempre vigilante, terra de meus pais, terra que me serviu de berço.

Creio em ti que nasceste como terra de asilo, recebendo e agasalhando, entre as tuas montanhas, o Mão de Luva, que te buscou como um refúgio, para no teu seio virgem lançar a primeira semente que te fecundou.

Creio em ti que, num passado já distante, com os primeiros tropeiros que daqui partiram transportando os frutos dos teus vastos cafezais, deste ensejo a que o Brasil levasse a terras estranhas e longínquas a nova alvissareira de que mais uma grande nação começava a se formar.

Creio em ti que hoje povoa as tuas várzeas e as tuas encostas de rebanhos que alimentam a infância, quando escasseia o leite materno, que nos robustecem na idade viril e nos revigoram na velhice.

Creio em ti, Cantagalo, que levaste o teu sangue, impulsionado pelas palpitações de teu coração, a outras regiões para criar, como filhas diletas, outras cidades, que, de ti desprendendo, formam hoje tantos outros centros independentes de civilização, que te cercam e te bendizem.

Creio em ti, que, escondida entre serras, jamais proclamaste a benignidade do teu clima, a salubridade de teus ares, a pureza das tuas águas, como que para não suscitar rivalidades com as tuas irmãs da Cordilheira dos Órgãos que se chamam Friburgo, Petrópolis e Teresópolis, quando entretanto aqui guardas um manancial inexaurível de saúde para quantos precisam buscar novas energias para organismos depauperados.

Creio no Direito, marco e segurança do bem-estar da coletividade, e foi aqui, no lar paterno, sob este céu que te cobre, que tive a minha iniciação neste credo salutar.

Creio na lei, que irradia a sua majestade quando interpretada e aplicada pela justiça soberana, e por isso detesto as ditaduras, e tu sempre ergueste bem alto o teu grito angustiado de protesto contra governos de arbítrio.

Cantagalo / RJ
Cantagalo / RJ

Creio na livre manifestação do pensamento, e a tua imprensa, de todos os tempos, está, nos arquivos, para atestar o teu culto sincero pela liberdade.

Creio na virtude, que aproxima os homens de Deus, e abomina o vício, que inutiliza as inteligências, envenena os corações e deprava os caracteres, e almas virtuosas não te têm faltado na refulgente constelação das tuas mães de família, que, santificadas pelo sacrifício da maternidade, criaram no passado e estão criando nos dias que correm os lares abençoados, que constituem os fundamentos indestrutíveis das sociedades sadias e viris.

Creio na caridade praticada sem alarde, direi mesmo às escondidas, que o teu seio piedoso abriga, longe dos olhares indiscretos, num dos teus recantos mais afastados, essa casa benfazeja, onde a velhice desamparada encontra afeto carinhoso de tua alma caridosa.

Creio na arte, que embeleza e dá suavidade à nossa vida, tão cheia de amargores, e neste momento estamos em face de uma obra de arte de um dos teus filhos, o escultor Honório Peçanha, que talhou este formoso monumento comemorativo do teu centenário, que acaba de descobrir aos nossos olhos maravilhados, o teu filho o poeta consagrado Artur Nunes da Silva, que nos revelou a alegria sonora dos teus melros e perpetuou a tua glória num hino que nos emociona e faz vibrar a nossa alma, como filha tua também essa delicada artista, que se chama Amélia Thomaz, cujos versos de métrica sem falhas, de forma lapidar, de inspiração rica de imprevistos e encantamentos, cantaram, enternecidos, o Mão de Luva, o Bandeirante do Amor, e derramam o bálsamo de sua arte nos nossos corações agradecidos.

Creio nas inteligências esclarecidas pela cultura, e é luminosa e rica, Cantagalo, a tua galeria de homens sábios, entre os quais tiveram os nomes imperecíveis de Euclides da Cunha, Lameira de Andrade, José Carlos Rodrigues, Professores Silva Santos, Chapot Prevost, Augusto Brandão, pai e filho, Rodolfo Albino, que levaram a paragens sem fronteiras o testemunho de que os teus filhos sabem se elevar às grandes culminâncias da ciência que dignifica.

Creio nos mestres que formam as inteligências jovens e estou certo de que pratico um ato de justiça fixando o ponto alto do ensino primário na figura veneranda de Maria Belliene D’Olival, que é tua filha, que temos a ventura de ver ainda entre nós e que foi a educadora desvelada de gerações cantagalense.

Creio nos teus filhos humildes que vivem do trabalho obscuro, porque, tu, afinal, Cantagalo, não és obra de ninguém porque és obra de todos, e a expressão máxima de teus construtores desconhecidos são os operários da cidade e os trabalhadores do campo, porque é nas suas mãos calejadas que se encontram a enxada que nos alimenta e a colher do pedreiro que argamassa os tetos em nos abrigamos.

Creio em Deus, fonte inesgotável de todos as bem-aventuranças, e não mediste sacrifícios para erguer, no ponto mais nobre do teu território, no centro urbano para o qual convergem todas as pulsações do teu peito, um templo que se alteia majestoso, na revelação edificante de que aqui o amor de Deus tem as suas raízes profundas em todos os corações.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.
Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

Creio em ti, Cantagalo, abrigo dos desamparados, e exemplo do trabalho fecundo, criadora de outras cidades, guarda avançada do direito, da lei e da liberdade, altar da virtude, anjo tutelar da caridade, geratriz de mestres e sábios, legionária da fé cristã, mãe carinhosa, terra boa, terra amiga, terra abençoada por Deus!

Surge e ambula! Ergue-te e caminha, Cantagalo, e que este monumento que acabamos de inaugurar, celebrando o centenário da sua maioridade, que diga aos que vierem depois de nós que hoje aqui nos reunimos, os teus filhos, para te protestar o nosso amor, a nossa fidelidade ao teu passado, a nossa fé no teu presente, e implorar a Deus, nas alturas, que abençoe e ilumine as tuas novas gerações para que se possam vencer com destemor as incertezas do futuro.

Surge e ambula! Ergue-te e caminha, e, como as procelárias, que desafiam as tempestades, prossegue intimorata no teu roteiro glorioso!”

Eis o credo de amor e fidelidade que todo cantagalense deveria guardar eternamente no pensamento e no coração, como, um dia, em 1957, ensinou o Dr. Julinho Santos.

Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.

Ver anterior

“Carnaval das antigas”, por Celso Frauches

Ver próximo

89% das brasileiras têm medo de pegar Covid nas aglomerações de Carnaval

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais Populares

error: Conteúdo protegido !!