Jovem friburguense é campeão mundial no World Pro Jiu-Jitsu, em Abu Dhabi
Naquele tempo, eu era ainda bem pequeno, com seis ou sete anos, quando o meu pai, no final das tardes, depois que o calor diminuía, me chamava para passear na Casa de Caridade de Cantagalo. Para mim era uma verdadeira festa, descia a escada do sobrado em que morávamos, ia correndo e pulando à frente de meu pai.
Na rua Getúlio Vargas, da residência da família Espírito Santo para baixo, a via pública não era calçada a paralelepípedos. No inverno era muita poeira e no verão muita lama. Por isso meu pai preferia ir pelo leito da ferrovia, uma vez que nesse horário não passaria nenhum trem.
Até a Cooperativa de Cantagalo, existiam duas pontes sobre o córrego São Pedro, como fossem pequenas e tivessem tábuas longitudinais no centro, onde gostava de passar. Mais abaixo, havia a ponte vermelha, mais longa e mais alta, sem as tábuas centrais, aí o medo me parava e eu esperava meu pai chegar para me dar a mão. Na outra mão, ele levava sempre uma bengala, cujo manúbrio era o esqueleto de um pequeno crânio humano muito bem esculpido na madeira.
Ao chegar à Casa de Caridade de Cantagalo, meu pai puxava uma corda que fazia soar o badalo de um sino. Surgia junto ao velho prédio a figura do zelador do hospital, Sr. Manoel Gomes, homem de baixa estatura, calvo, com os poucos cabelos brancos, que vinha solícito abrir o portão com uma grande chave de ferro.
Depois do portão, caminhávamos por uma passarela de pedra, até o velho prédio, casarão com dez janelas com vidraças. Meu pai penetrava e eu seguia com seu Manoel para a casa do zelador, situada atrás do hospital. Lá encontrava sua esposa, Dª. Alice, mestiça um pouca obesa, risonha, pessoa boníssima, que parecia estar sempre de bem com a vida. Íamos para o quintal, onde brincava com seus filhos. Lembro-me, ainda, do nome de alguns: José, Dyrce e Umbelina, dos outros não me recordo. Havia um pomar com grande quantidade de árvores, onde Dª. Alice conseguia colher alguma fruta madura que me ofertava. Era uma festa!
Havia também criação de várias aves: galinhas, patos, marrecos e alguns pombos. Desses, o que mais me impressionou foi um “galo capão”, que agia como uma fêmea, criando uma ninhada de pintos.
No alto do morro existia uma velha casa. Certa vez perguntei ao meu pai quem morava nela. Ele me respondeu que não morava ninguém, que era o lazareto onde, na epidemia de varíola, eram internados os doentes contaminados.
Naquele tempo, só eram internados no Hospital de Cantagalo os pacientes carentes, classificados como indigentes. Os de recursos financeiros eram cuidados na própria residência. Assim, o trabalho de meu pai no hospital não era remunerado. Por isso, em um retrato que lá existe em sua homenagem, está escrito: “Fez da Medicina um sacerdócio”.
Criado em 1875 pela Loja Maçônica Confraternidade Beneficente de Cantagalo, com apoio da Loja Ceres e da população, nosso hospital está com 146 anos de existência, quase um século e meio de lutas pela vida contra o sofrimento humano, sendo, talvez, o mais velho de nossa região e motivo de orgulho para Cantagalo.
Fico imaginando quantas crianças ali nasceram, quantas cirurgias realizadas, sem citar os casos de Clínica Médica, Pediatria e Ortopedia que por ali passaram. Só em um trabalho que apresentei na Academia Fluminense de Medicina, em 21 anos (1965-1985), nasceram 8.430 cantagalenses, com um percentual de cesarianas de 29,60%. Os cantagalenses deveriam se orgulhar desse nosocômio que presta serviço a vasta região fluminense, mantendo convênio com alguns municípios vizinhos.
Nesse período de quase dois anos, que a pandemia, só no Brasil, ceifou 603.000 vidas, a administração do Hospital de Cantagalo andou na frente da Covid: preparou um setor do hospital totalmente separado, comprou respiradores, monitores, climatizou o ambiente, adquiriu equipamentos de proteção individual (EPI) para médicos e funcionários exclusivos desse setor, que colocaram em risco suas vidas e de seus familiares para cuidarem dos atingidos pela terrível virose.
Inicialmente era só a enfermaria de Covid. De seis meses para cá, a Secretaria Estadual de Saúde autorizou o funcionamento da U.T.I. que prestou inestimáveis serviços à comunidade regional, internando os casos mais graves. Nem todos puderam ser salvos, mais a maioria foi tratado com sucesso, retornando aos seus lares e ao convívio da família.
Período dificílimo para toda humanidade, onde os preços de equipamentos e medicamentos necessários ao tratamento subiram absurdamente. Alguns medicamentos que a ampola custava cerca de R$ 10,00 chegaram a R$ 90,00, numa inflação criminosamente manipulada por fabricantes e vendedores inescrupulosos que não respeitaram o sofrimento humano.
Recentemente, recebi, via internet, uma estatística dos casos de Covid internados no Hospital de Cantagalo e, apesar de triste com a perda de colegas de profissão, amigos, vizinhos e filhos de amigos que faleceram, senti orgulho do resultado alcançado. Vejamos:
Doentes na enfermaria de Covid em 12 meses – 197
- Óbitos – 11
- Curados – 186
- Mortalidade (%) – 5,58%
- Média de Internações – 7,3 dias
Doentes internados na U.T.I. em 06 meses – 291
- Óbitos – 68
- Curados – 223
- Mortalidade (%) – 23,36%
- Média de internações – 12,41 dias
Considerando que, em algumas estatísticas nacionais (Poder), a mortalidade em U.T.I. de hospitais particulares foi de 29,7%, enquanto na rede pública chegou a 52,9%, o resultado do Hospital de Cantagalo foi satisfatório, graças as medidas tomadas pela administração do nosocômio e o trabalho das equipes que, para salvar vidas alheias, colocaram em risco as próprias vidas, em obediência ao juramento de Hipócrates, o Pai da Medicina.
Que o Deus todo poderoso, criador do universo, proteja por muitos séculos a Santa Casa de Misericórdia de Cantagalo, concedendo longa vida a todos que se empenharam na terrível e perigosa luta contra a Covid, a favor da vida.
E Viva A Vida!
Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.