“Quatro amigos”, por Júlio Carvalho

Celso Frauches e Júlio Carvalho

Celso Frauches e Júlio Carvalho

Março de 1948, o mundo vivia um período de tranquilidade; a 2ª Guerra Mundial havia terminado há três anos, deixando um triste saldo de 55 milhões de civis e 25 milhões de militares mortos por todos os continentes. Hollywood realizava filmes românticos ou musicais repletos de patinação no gelo. Em Cantagalo, o único meio de transporte para o Rio de Janeiro eram os trens da E.F. Leopoldina, enquanto o sistema de telefonia era péssimo, havendo apenas um posto público de telefones no centro da cidade, ao lado da barbearia do senhor Zinho Barbeiro.

O ginásio era propriedade do Dr. Messias de Moraes Teixeira, advogado e professor de português, residente em Nova Friburgo, onde era proprietário do Colégio Modelo. Era um cidadão educadíssimo, que lembrava um diplomata. Em Cantagalo, o colégio era dirigido por seu irmão, o veterinário Mario de Moraes Teixeira, tenente da reserva do Exército Brasileiro, que se considerava membro da Força Expedicionária Brasileira porque durante o conflito mundial serviu no Paraná, na fronteira com a Argentina.

Nesse clima, o Ginásio Euclides da Cunha iniciava mais um ano letivo, com a turma do primeiro ano, formada por alunos aprovados no último exame de admissão; poucos se conheciam, pois eram oriundos de diversas escolas como o Lameira de Andrade, o Curso Amélia Thomaz e o Curso da Prof.ᵃ Dulce Lutterbach. Outros foram preparados nos distritos de Cantagalo, enquanto uma parcela era proveniente de Cordeiro, uma vez que Cantagalo era o único município da região que possuía curso ginasial.

Pouco a pouco, foram formados os grupos de alunos que durante o curso se transformaram em amizades sólidas e duradouras. Um desses grupos era constituído por Geraldo Arruda Figueredo, João Nicolao Guzzo, Celso da Costa Frauches e o autor do artigo, os três primeiros da mesma idade; o Celso, um ano mais novo. Do grupo, o Geraldo era o fora de série, superinteligente, educadíssimo, melhor aluno da turma durante todo o ginasial. Estudava todas as matérias, desenhava bem e se empenhava, também, nas aulas de Trabalhos Manuais.

No segundo ano, João Guzzo passou a se dedicar mais à poesia e às serestas, deixou de lado o estudo e acabou perdendo o ano. Todavia, a amizade do grupo permaneceu e ele continuou no nosso grupo de amigos. No ano seguinte, passou a estudar à noite numa turma de adultos, com isso, adquiriu maturidade e engrenou na vida.

Celso, o benjamin dos quatro amigos, veio de São Sebastião do Paraíba, era filho único, mas jamais apresentou os defeitos próprios daqueles que não possuem irmãos. Nunca fora mimado pelos pais. Inteligente, jamais teve dificuldade em progredir nos estudos.

A rotina era sempre a mesma, na parte da manhã, as aulas; à tarde, algumas horas de estudo e o futebol no campo de tênis, acima do pomar da Dona Beijinha. A noite, o jardim de Cantagalo, exceto nas quartas-feiras, dia de cinema no Cine Teatro Elias, administrado pelo casal Martinho e Nila Barros.

Concluído o ginasial, o quarteto foi seccionado; Geraldo e João Guzzo seguiram para o curso de contabilidade, enquanto Celso e eu fizemos o curso científico, mas a união espiritual continuou a mesma, com comunicação diária.

Três anos depois, partimos para a concretização de nossos sonhos profissionais. Celso, Geraldo e João para Niterói, capital do estado do Rio de Janeiro, e eu para a cidade do Rio de Janeiro, então capital do Brasil. Os dois primeiros sonhavam com a advocacia, os dois últimos com a medicina. Realizamos nossos projetos da juventude, exceto o Celso. Chegando a Niterói, se empolgou com o jornalismo, passando a colaborar com o noticiário Jornal Fluminense e com jornais da cidade do Rio de Janeiro. Passou a trabalhar na Assembleia Fluminense como almoxarife. Todavia, cidadão inteligente, progrediu e galgou postos muito mais elevados.

A Baía de Guanabara jamais foi um obstáculo a nossa amizade. Ainda não havia a ponte, mas nas raras folgas que a Faculdade de Ciências Médicas me proporcionava, pegava uma lancha e me reunia com os três amigos em Niterói. Nosso ponto de encontro era um bar ao lado da estação das barcas, na praça Araribóia. Ali, nossa conversa girava sobre Cantagalo, nossos estudos, nossos planos de vida. Tomávamos chopp e comíamos salgadinhos de ótima qualidade, acariciados pela brisa marítima e tendo diante dos olhos o belo cenário da Baía da Guanabara.

Algumas vezes íamos assistir a peças do teatro em revista na Praça Tiradentes. Sentávamos nas filas do gargarejo, onde o João Guzzo, devido à insuficiência ocular, usava um binóculo próprio para teatro. Desse modo, via melhor as atrizes vestidas com trajes mínimos.

Terminados nossos cursos, João Guzzo retornou para Cantagalo, onde prestou inestimáveis serviços como pediatra e anestesista, além de atividades sociais e, na política, como presidente da Câmara Municipal. Infelizmente, foi o primeiro a partir para a eternidade, de modo trágico, na cidade de Rio das Ostras.
No início de 2023, o outro amigo, Geraldo Arruda Figueredo, nos deixou, vítima de uma neoplasia cerebral de rápida evolução. Geraldo sempre foi o mais inteligente e educado do nosso grupo. Verdadeiro diplomata que, depois de formado em Direito, permaneceu em Niterói, foi procurador do estado do Rio de Janeiro, chegando a procurador-geral do estado no governo de Benedita Silva.

Celso, depois de aposentado, foi para o gabinete de um coronel no Ministério da Educação, que nada entendia do assunto; passava todos os processos para o Celso, que tinha que estudá-los antes de despachar. Resultado, Celso passou a entender tanto do assunto que, posteriormente, criou um escritório de assessoramento para a educação, com clientes em vários estados brasileiros. Teve atuação marcante na criação da Universidade de Marília (SP), na Universidade de Nova Iguaçu (RJ), na Universidade de Brasília (onde lhe foi prestada uma homenagem) e em diversos pontos do território nacional. Andava tanto que o Geraldo dizia que “o Celso é o cigano do nosso grupo”.

Conhecedor profundo de vários assuntos, com inteligência privilegiada, Celso escreveu vários livros sobre educação e uma biografia sobre seu pai, Henrique Luiz Frauches, que, por duas vezes, ocupou o Poder Executivo de Cantagalo, levado pelo voto popular.

Em 2020, deixou tudo que tinha em Brasília e retornou para Cantagalo; aqui, contraiu matrimônio com a prof.ᵃ Ângela Araújo de Souza e, irrequieto como sempre, criou o Instituto Mão de Luva, mantido com pesados recursos próprios, o que eu não achava justo e discordava.

Convidado pelo jornalista Célio Figueiredo, passou a colaborar, semanalmente, com uma coluna no Jornal da Região. Aquele que fora meu colega durante sete anos no Colégio Euclides da Cunha e amigo de mais de meio século, voltava a ser o companheiro na página 4 do Jornal da Região, ao lado do nosso diretor-geral.

Ao retornar a Cantagalo, Celso queria, também, criar a Academia Cantagalense de Ciências e Letras. Sentindo que seria mais uma carga financeira sobre seus ombros, fui duro com ele, dizendo-lhe: “Você está me lembrando o Don Quixote de la Mancha. É preciso ser mais realista. Está com a cabeça cheia de sonhos”.

Em 2023, publicamos em conjunto o volume primeiro do livro “Viajando no Tempo…”, com biografias de pessoas que se destacaram em Cantagalo e na região, ajudando o crescimento com seus trabalhos.

Infelizmente, quando preparava o segundo volume de Viajando no Tempo, Celso foi acometido pela Covid, que lhe causou uma pneumonia. Permaneceu durante alguns dias na U.T.I. do Hospital da Unimed, em Nova Friburgo, onde faleceu na madrugada do dia 13 de dezembro, sendo sepultado, às 14 horas, no cemitério de Cantagalo, no túmulo de sua mãe, senhora Etelvina da Costa Frauches (Dona Telva).

Dos quatro amigos, restou apenas o velho Carvalho, com o cérebro cheio das boas lembranças vividas pelo quarteto e o coração lacrimoso pela saudade dos amigos que partiram. Que Deus os guarde no seu paraíso!

 

Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo
Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo e vice-prefeito do município de Cantagalo

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