“Quem você condena?”, por Amanda de Moraes

São similares os sistemas autoritários. O secreto e o obscuro são habitados na tirania. É irônico: quem “manda” nem sempre grita ou deixa explícito. O caso é grave.

O Brasil teve os seus Anos de Chumbo, décadas de 60 e 70, marcados por esse mistério em torno de algumas facetas do estado. A ausência de conhecimento implica blindagem a qualquer manifestação. Ora, como questionar o que não se conhece? “Pois, tudo aquilo que o homem ignora, não existe para ele” – uma paráfrase (expressão dita em outras palavras) muito difundida entre os filósofos.

A publicidade (conhecimento dos atos) possibilita ao povo, ao menos em tese, o controle do poder estatal. É por meio da transparência que se toma conhecimento das manifestações dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, para questionar, exigir, demandar.

A garantia constitucional da publicidade é, digamos, um diamante à democracia.

Entretanto, todo excesso, inclusive o de virtudes, pode esconder um vício. “Quem nos defenderá da bondade dos bons?” – bradou Agostinho Ramalho Marques Neto.

Publicidade e crime caminham lado a lado. Não é preciso ser um especialista para notar esse fato, o qual está intrincado no cotidiano. Se há algo que alimenta o ibope, o crime está entre os pratos prediletos.

Essa transparência, galgada por incontáveis lutas em favor da democracia, quando desvirtuada, tem consequências severas nos julgamentos criminais. A publicidade opressiva, magistralmente explorada pela Desembargadora Simone Schreiber em sua obra, pode conduzir a sentenças condenatórias com base no clamor popular.

Certo é que a Constituição da República de 88 (Constituição Cidadã), em seu artigo 5º, inciso LX, impõe que “só poderá ser restringida a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem“. O seu artigo 93, inciso IX, igualmente prevê que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos“.

Além disso, esse mesmo diploma legal prevê outros direitos e garantias fundamentais, como a presunção de inocência, que assenta a impossibilidade de se considerar uma pessoa culpada antes do trânsito em julgado (não havendo mais possibilidade de recursos) de uma sentença penal condenatória.

Estarão alguns julgadores imunes à paixão popular e ao comércio midiático de um crime? Difícil responder. Estou há quinze anos (ano primeiro da minha graduação), debruçando-me em obras jurídicas, para obter ensinamentos humanos e justos. Vou além: sou advogada, mulher, brasileira e, todos os dias, estou diante de alguém que busca uma saída: a garantia de um direito.

Sobre o tema, existe o emblemático caso de Enzo Tortora, famoso apresentador de televisão da Radiotelevisione Italiana (RAI), preso e condenado na década de 80, com base em delações premiadas falsas, feitas pela máfia italiana. A mídia não o poupou!

Com a publicidade e a intensa repercussão do caso, outros criminosos, a fim de igualmente se beneficiarem do instituto da colaboração premiada, passaram a igualmente incriminar Enzo Tortora. Em meio ao episódio midiático, mesmo tendo a inocência posteriormente declarada pelo Tribunal Superior, Tortora faleceu, sob a pecha pública de culpado.

Se você chegou até aqui e sentiu o ácido da injustiça, isso tem um nome: o humanismo e o racional alertaram contra os excessos das emoções. Tortora, que poderia ser um parente seu ou meu, foi golpeado pelo uso desumano de uma publicidade opressiva.

Vamos um pouco além: hoje em dia, no Brasil, há inúmeros Tortoras – no bairro, na academia, na política e até nas artes. Essa opressão, argumentada pela universidade do WhatsApp, condena todos os dias. O Tribunal? Grupos criados, todos os dias, para apontar (com toques nada refinados).

A moeda sempre terá dois lados. A justiça, a Carta Magna e o Direito estão em um. Detalhe: o juiz, ao contrário do futebol, não lança a moeda ao deus-dará. Não há um sorteio; há uma base processual penal para se criar uma tese.

O autoritarismo e a opressão custam vidas.

 

Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes.
Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes.

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