Jovem friburguense é campeão mundial no World Pro Jiu-Jitsu, em Abu Dhabi
Na minha juventude, quando frequentava a Faculdade de Ciências Médicas, na cidade do Rio de Janeiro, li um ótimo romance histórico – Espártaco – em que o personagem principal é um gladiador que lidera, no sul da Itália, uma rebelião contra o império romano.
No início, conseguem vencer algumas legiões romanas, mas são sitiados e sem alimentos fazem um pacto que lutarão até a morte mas não retornarão à atividade de escravos gladiadores. Assim acontece, preferiram a morte do que a escravidão.
A história do Brasil possui uma terrível mancha, profundamente triste: a escravidão do povo negro de origem africana.
Creio que o dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, deveria ser um momento de grandes reflexões para os brasileiros, principalmente para os brancos. Como médico, fico pensando como os africanos resistiram aos sofrimentos impostos pelos senhores de escravos.
As tribos africanas de etnias diferentes entravam em lutas e os vencidos eram presos e negociados com os compradores de escravos. Embarcados nos navios negreiros eram colocados nos porões das embarcações, com ventilação insuficiente, mal alimentados, sem higiene. Muitos morriam durante a travessia, sendo jogados ao mar, talvez fossem os mais felizes!
Chegando aos portos brasileiros e de outras nações das Américas sofriam uma quarentena: eram limpos, melhor alimentados, melhorando o aspecto. Nessa fase alguns faleciam, sendo enterrados em locais próximos. Recentemente, no Rio de Janeiro, no Valongo, ao realizarem escavações para obras públicas, foram encontrados muitos esqueletos de africanos. Depois eram submetidos ao leilão, dizem que nesse dia passavam óleo nos africanos para que eles ficassem luzidios atraindo os olhares dos compradores.
Era outro momento triste, as famílias eram desfeitas, o senhor comprava um membro da família e não se interessava pelos demais. Jamais se encontrariam! Alguns eram levados para as fazendas de café, outros para as minas de ouro e alguns para trabalhos domésticos na zona rural ou nas cidades.
Relatam os historiadores que os escravos trabalhavam cerca de doze horas por dia, sendo recolhidos, no final do dia, nas senzalas sem qualquer conforto, com ventilação precária, onde permaneciam como prisioneiros.
Os que produziam pouco ou eram rebeldes sofriam punições violentas, eram espancados, chicoteados, colocados no tronco ou coisas piores. Os que fugiam recebiam castigos maiores, eram perseguidos e caçados pelos feitores e por cães ferozes. Milhões de africanos passaram por essas humilhações e sofrimentos.
Alguns dizem, mas em determinadas fazendas havia hospital para escravos. Não era benevolência do senhor, isso ocorreu depois da Lei Euzébio de Queiroz, 1850, que proibiu o tráfico de escravos. Estes ficaram mais valiosos e difíceis para a aquisição, obrigando os senhores de escravos a cuidar melhor dos que possuía.
Determinados escravos, mais corajosos, fugiam e, quando não eram recapturados, formaram quilombos organizando sociedades. Desses o mais famoso ocorreu em Alagoas, na Serra da Barriga, chefiado por Zumbi dos Palmares. Dizem que Zumbí era de uma linhagem nobre africana, autêntico líder, organizou uma sociedade, onde enfrentou várias tropas, vencendo-as em muitas batalhas.
Em 13 de maio de 1888, ocorre a Lei Aurea, concedendo liberdade aos escravos. Eu pergunto: que tipo de liberdade? A quase totalidade dos escravos era analfabeta, sem recursos financeiros, permaneceu nas próprias fazendas, com pequena remuneração financeira e sem qualquer direito trabalhista. Ou vivendo como colonos ou meeiros, em habitações de barro batido e cobertas por sapê, sem instalações sanitárias, como, na minha infância, tive oportunidade de ver na zona rural de nosso município.
Até hoje os piores serviços e os mais pesados são realizados pelos afro-brasileiros; nas cidades vivem na periferia, em favelas, alagadiços e palafitas, sujeitos a diversos tipos de infecção por falta de esgotos sanitários e de água tratada. Todavia, apesar de todos esses obstáculos, nossos patrícios afro-brasileiros lutam bravamente e heroicamente conquistando ascensão social.
Observo, nas escolas públicas e nas universidades um número cada vez maior; no magistério o mesmo ocorre. Pessoas que galgaram posição de destaque depois de muita luta própria e dos pais, que se sacrificam para que os filhos tenham melhor condição de vida.
Nos esportes os afro-brasileiros ocupam lugar de destaque, conquistando medalhas olímpicas para o Brasil, em número cada vez maior; todos vindo das camadas mais pobres de nossa população.
No futebol, esporte mais popular, o número é incontável. Alguns exemplos: Leônidas da Silva (o Diamante Negro), Domingos da Guia (o Divino), Zizinho (o Mestre), Didi, Jairzinho, Paulo Cesar. Ronaldinho Gaúcho, Andrade, Adílio, Barbosa, Zózimo, todos liderados por Pelé (o Rei), maior jogador de futebol que o mundo já conheceu. Sem falar de Vinícius Junior, joia lapidada no C.R. Flamengo, que hoje brilha no Real Madri. Hoje, aparecem também no basquete e no voleibol, com grande destaque nas nossas seleções.
Na literatura brasileira a relação é interminável: Machado de Assis, Lima Barreto, Cruz e Sousa, Conceição Evaristo, Abdias do Nascimento, Milton Santos, Adão Ventura, Carlos Machado, Luiz Gama, Maria Carolina de Jesus, Djamila Ribeiro, Maria Firmino dos Reis, etc., etc.
Enfim, em todos os ramos da atividade humana nossos patrícios afro-brasileiros conquistam seus lugares de direito: música, engenharia, medicina, direito. A influência do povo negro aparece intensamente em todos setores brasileiros. O meu falecido amigo, Dr. Alaor Scisínio, autor de vários livros, publicou um dicionários de palavras africanas existentes no português do Brasil.
Nos primeiros meses da minha vida, fui amamentado por uma afro-brasileira; nutria três crianças ao mesmo tempo, seu filho e mais duas. Faleceu com mais de noventa anos, era portadora de enorme vitalidade, creio que seu leite passou para mim essa característica, pois já cheguei aos 86 anos e sete meses de vida. Todo Dia de Finados deixo uma flor no seu túmulo, onde aparece sorrindo em uma foto, como sempre viveu!
Até os sete anos fui cuidado por outra afro-brasileira, educadíssima, que me tratava como um filho amado. Gostava tanto de crianças que, ao mudar para o Rio de Janeiro, foi trabalhar como servente no Hospital Jesus, chegando a auxiliar de enfermagem.
Minha gratidão eterna aos afro-brasileiros por tudo que essas duas mulheres fizeram por mim nos primeiros anos de minha vida. Minha primeira neta nasceu no dia da Consciência Negra, o que me causou enorme alegria.
Na história do Brasil, a raça negra também aparece com destaque; no combate e expulsão dos holandeses do nordeste brasileiro um dos comandantes era Henrique Dias.
Em 1798, na Bahia, a chamada Revolta dos Alfaiates, que lutava pela independência do Brasil, foi liderada por quatro brasileiros negros, que acabaram enforcados em praça pública em 08 de novembro de 1799.
Na guerra contra o Paraguai, os soldados negros brasileiros se destacaram pela coragem e bravura, mudando o conceito do exército brasileiro em relação à escravidão.
Na segunda guerra mundial, a FEB era a única tropa formada por soldados de todas as raças, conquistando vitórias importantes nos Apeninos, do sul ao norte da Itália, até Monte Castelo; enquanto isso, os Estados Unidos lutavam com dois exércitos, o de brancos e de negros, total separação. Que horrível segregação!
Somos um povo mestiço, o grande antropólogo Prof. Darcy Ribeiro, no magnífico livro O Povo Brasileiro, diz que ainda somos um povo em formação, cujo biótipo ainda não está definido, mas que no futuro seremos uma raça morena graça à miscigenação. Esse dia chegará!
Nossos patrícios afro-brasileiros ainda tem um longo caminho a percorrer em busca dos direitos à verdadeira cidadania, mas uma parcela importante já foi conquistada. É importante a persistência, tendo sempre presente a imagem de Zumbi dos Palmares, autêntica Espártaco negro da nacionalidade brasileira.
Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.