Jovem friburguense é campeão mundial no World Pro Jiu-Jitsu, em Abu Dhabi
Nas vezes em que precisava me identificar em eventos diversos, em Brasília ou em outras localidades, eu começava dizendo que nasci em Cantagalo, “terra de Euclides da Cunha e da Rogéria”. Via no rosto de alguns um riso simulado. Não podia obrigar as pessoas a respeitarem essas duas personalidades marcantes da história de Cantagalo. Não estava comparando Euclides da Cunha à Rogéria, duas personalidades completamente diferentes. A própria Rogéria afirmava que “em Cantagalo, nasceu a maior bicha do Brasil – no caso, eu – e o maior macho do Brasil, Euclides da Cunha”.
Astolfo Barroso Pinto nasceu na cidade de Cantagalo, em 25 de maio de 1943. Seus pais mudaram para Niterói, então capital do antigo Estado do Rio de Janeiro, quando Astolfo, o Tofinho, como era chamado pelos pais e parentes próximos, tinha três anos de idade. Ele afirmava que na infância tinha consciência de sua homossexualidade. Em “Rogéria – Uma mulher e mais um pouco”, sua biografia autorizada, fala sobre sua mãe, Eloah: “Tive a maior mãe do mundo e nunca sofri bullying. Toda vez que aconteceu alguma coisa comigo foi porque eu quis. Minha mãe foi uma mulher tão maravilhosa que nunca teve vergonha de mim”.
Astolfo passou a ser chamado Rogério, por Zélia Hoffman, quando era maquiador na TV Rio, seu primeiro trabalho profissional. O nome Rogéria lhe foi dado quando venceu um concurso de fantasias no carnaval de 1964, vestido de Dama da Noite. Quando declarado vencedor, como “Rogério, maquiador da TV Rio”, a plateia gritava: “Rogéria!, Rogéria!”. Feliz ela afirmava: “Quer dizer, meu nome artístico foi dado pelo público, melhor batismo não há”.
Rogéria não optou por uma cirurgia de redesignação sexual e nem alterou seu nome de batismo nos seus documentos de identidade. Justificou: “A mulher não é o órgão genital, a mulher está dentro de mim. Esse jeito de mulher ninguém me ensinou, nasci assim, não aprendi com ninguém. Não necessito de nenhuma genitália feminina”.
Na Rádio Nacional, um grande palco dos artistas nas décadas de 40 e 50, foi “jurada” de programas de auditório, como os de César de Alencar, Ary Barroso e outros. Atuava sempre que podia nos programas de Emilinha Borba, de quem era fã “de carteirinha”.
Aos poucos foi conseguindo o seu lugar ao sol: maquiadora, transformista, cantora, atriz.
Viajou para a Europa. Dominava o idioma francês. Em Paris, passou cinco anos, onde se apresentava em shows diversos.
De volta ao Brasil, por uma soberba atuação em comédia teatral, ao lado de Grande Otelo, recebeu, em 1979, o Troféu Mambembe, criado pelo então Ministério da Cultura. Na Galeria Alaska, um reduto gay na cidade do Rio de Janeiro, fez sua estreia em 29 de maio de 1964.
Era uma pessoa bem humorada. Enfrentava os obstáculos naturais a um homossexual no século 20. Devido ao seu carisma, abriu as portas para os profissionais artísticos no rádio, sendo pioneira na TV.
A sua vida amorosa não foi objeto da mídia sensacionalista. Discreta, assumiu o seu relacionamento de um ano com empresário Oswaldo, o Vadico. Manteve a sua privacidade até a publicação de sua biografia autorizada.
Fez grande sucesso no rádio, teatro, cinema, em novelas e programas de auditório na TV, como os de Chacrinha, Gilberto Barros e Luciano Huck.
Personalizou a rainha Maria ‒ A Louca, na comissão de frente da Escola de Samba São Clemente, num enredo que tratava dos duzentos anos da vinda da família real para o Brasil.
Na comédia Alta Rotatividade contracenou com artistas famosos, como Leila Cravo, Agildo Ribeiro e Ary Fontoura. No espetáculo O Musical, sucesso entre 2007 e 2010, atuou ao lado de Zezé Motta, Eliana Pittman, Alessandra Maestrini e Ida Gomes.
Em 2011, Rogéria recebeu o 22º Prêmio da Música Brasileira, em uma solenidade com a presença de artistas famosos à época.
Durante dez anos, foi a atriz principal do musical Divinas Divas, ao lado de Camille K e de outros transformistas, um sucesso de crítica e de bilheteria.
Falando de Rogéria, de homossexualidade, de respeito, empatia e aceitação, veio-me à mente Pestalozzi, em sua volumosa obra dedicada à educação de crianças, adolescentes e jovens. Nela, estabeleceu o princípio da interação afetiva como indispensável ao relacionamento humano, seja na escola, no lar, no trabalho, na vida, enfim. Para tanto, é necessário aprendermos a amar-nos, amar o próximo e amar a Deus, criador de tudo e de todos. Aprender amar o próximo inclui todos os seres humanos, sem qualquer exclusão, como os diferentes e as diferenças, como ensina o filósofo Élder Oaks: “Como seguidores de Cristo, devemos viver pacificamente com outras pessoas que não compartilham de nossos valores ou não aceitam os ensinamentos sobre os quais se baseiam”.
Esses ensinos estão em consonância com o principal mandamento legado por Jesus Cristo à humanidade: “Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei” (João, 15, 12).
Amar nem sempre é fácil. Mas necessário e indispensável – nosso maior desafio como seres humanos!
E a Rogéria sempre foi desafiadora.
Cantinho da poeta Amélia Thomaz
Saudade
Saudade é como cachaça
Um traguinho, outro traguinho…
Depois que vicia, passa
A matar devagarinho…
(Extraído do livro Alaúde (Cantagalo, RJ: Ed. Autor, 1954, p. 11))
Celso Frauches é escritor, jornalista, já foi secretário Municipal em Cantagalo e é presidente do Instituto Mão de Luva.