Jovem friburguense é campeão mundial no World Pro Jiu-Jitsu, em Abu Dhabi
No último sábado, 12 de março, à tarde, fugindo do noticiário da triste e covarde agressão da Rússia contra a Ucrânia, passei a assistir um programa sobre as cidades históricas, verdadeiras relíquias que o espírito dos mineiros conseguiram conservar, preservando-as da invasão da expansão imobiliária.
Depois de mostrar imóveis, praças e igrejas centenárias de São João del Rey e de Tiradentes, subitamente passou para o trem de turismo que liga as duas cidades, composição de quatro carros de passageiros puxados por uma locomotiva a vapor, apitando alegremente e soltando fumaça pela chaminé. Bastou isso! Meu pensamento retrocedeu cerca de setenta anos, para minha juventude, quando Cantagalo também era servido pela Estrada de Ferro Leopoldina.
O trem era uma referência e a estação o ponto de convergência da população, principalmente da juventude; lá sabíamos quem chegou e quem partiu da nossa cidade; não havia bancas de jornais e revistas, era o trem que trazia o jornaleiro vendendo os jornais, eram dois que se revezavam, um magro e moreno, era o Zé de Moraes, que possuía parentes em Cantagalo e Cordeiro; o outro, nunca soube o nome, era gordo, alourado, lembrando um europeu nórdico. Estavam sempre bem humorados.
A estação de Cantagalo era antiga, construída nos primórdios da estrada de ferro de nossa região, sem nenhum gosto artístico, pintada de amarelo. Além da plataforma para passageiros, tinha um grande depósito que recebia as cargas que o trem trazia para Cantagalo e onde eram guardados os objetos despachados para outras estações. Na parte central, ficava a bilheteria que vendia as passagens; nos fundos o telégrafo, importantíssimo, que enviava para outras estações tudo que ocorria, como chegada e saída dos trens, problemas ocorridos no ramal, etc. Na outra extremidade da estação, era a casa do agente, responsável por tudo.
A Rede Ferroviária Federal construiu estações novas em várias localidades, como Cordeiro, Bom Jardim e Nova Friburgo, mas a de Cantagalo permaneceu sempre antiga, semelhante a de Monnerat. Todavia, era superior as demais, pois, atrás da estação, paralelo à mesma, existia a oficina de reparos, apta a fazer pequenos reparos nas locomotivas, vagões de cargas e carros de passageiros, quando necessário. Nos fundos, situava-se o escritório.
Havia ainda outra característica própria da nossa velha estação, aqui era o local em que ficavam estacionadas as locomotivas a vapor, as conhecidas Marias Fumaça ou Vaporentas como era conhecidas.
No início eram locomotivas pequenas, fabricadas nos Estados Unidos; mais tarde, surgiram as maiores, do tipo Garrat. Eram máquinas articuladas, compostas de três partes, o que facilitava a locomoção em trajetos muito sinuosos, como acontecia em nossa região montanhosa. Quando a E.F. Leopoldina foi extinta, em Cantagalo existiam seis locomotivas a vapor, quatro do tipo Garrat e duas menores, mais antigas. As Garrat eram as de números 400, 401, 402 e 404, enquanto as menores e mais antigas eram a 72 e a 177. As Garrat é que faziam o trabalho de rotina, enquanto as menores ficavam como reservas.
Cada locomotiva era entregue a um maquinista, sendo responsável pela sua manutenção. O que mais zelava por sua locomotiva era o senhor José de Souza Barros (seu Zezinho Barros). Sua máquina era decorada com peças de bronze e dizem que tinha até um tapete no interior, na cabine. Quando estava de folga, ele chamava sua equipe e ia pessoalmente limpar sua máquina, passando Kaol em todas as peças de bronze.
Dizem que o mais barulhento era o Crisanto Silva, gostava de chegar e sair das estações com o apito agudo da sua locomotiva aberto, talvez por ter sido músico da Sociedade Musical XV de Novembro.
Na minha infância, havia uma máquina que era um sucesso para a criançada, era a “máquina aranha”; possuía uma enorme quantidade de engrenagens nas rodas, quando andava parecia as pernas de uma aranha, daí o nome. Dizem que era uma locomotiva lenta e de força.
As locomotivas eram tratadas com carinho. Quando a caldeira estava recebendo água, diziam “a máquina está bebendo água”; quando a locomotiva perdia velocidade nas subidas mais íngremes, falavam “a máquina está resfolegando”, como se ela fosse um animal de estimação.
Naquele tempo em que as rodovias não eram asfaltadas, que no período chuvoso ficavam intransitáveis, era o trem que garantia o abastecimento das cidades do nosso interior. Atrasavam, mas não deixavam de chegar.
Criminosamente, de modo súbito, os trilhos foram arrancados e as cidades e vilas abandonadas, até onde não havia rodovias transitáveis, como Euclidelândia, Boa Sorte e Laranjais. Ao mesmo tempo, os ferroviários, que tiveram atuação marcante na comunidade, foram, da noite para o dia, transferidos para outras localidades, tendo que abandonar em Cantagalo e cidades vizinhas suas famílias, gerando problemas de ordem social.
Em 2001, ao terminar o curso de mestrado na Universidade Norte Fluminense, em Campos dos Goytacazes, o Prof. Gerson Tavares do Carmo apresentou um magnifico trabalho denominado A Extinta Estrada de Ferro Cantagalo/RJ, em que analisa todos os aspectos sociais, históricos, econômicos, etc, entrevistando múltiplos ferroviários e pessoas diretamente ligadas aos mesmos.
Eu, por exemplo, possuía vários parentes ferroviários; do lado paterno tinha o primo Manoel Pinto Machado (maquinista) e seus filhos Evanderli Jorge Machado e Meinardo Machado; do lado materno Licínio Arruda Pinheiro (maquinista); além dos meio-parentes, os irmãos Sebastião, Odir e Geraldo de Souza Teixeira. Sem falar nos inúmeros amigos que já se foram para a eternidade: Antônio Penna, Fausto Azevedo, Carlos Fernando Gomes (Dondoca), Geraldo Moura, José Ecard, Cyro Nascimento e tantos outros que no momento não me lembro. Poucos estão ainda vivos como o querido amigo Aluísio Falcão, filho do inesquecível casal José Marinho Falcão e Mabília Pereira Falcão.
A categoria dos ferroviários se caracterizava pela disciplina com o trabalho e o orgulho de ser ferroviário. Possuía um grande amigo afro-brasileiro, que tocava bandolim na Igreja Assembleia de Deus. Certa tarde, conversando com ele, na praça da cidade, lhe perguntei: “Sebastião, você foi ferroviário”? Ele, imediatamente, empertigado, me respondeu: “não, doutor, não fui. Eu sou ferroviário”. Levando a mão ao bolso da camisa, retirou seu cartão de identidade do Sindicato dos Ferroviários e me mostrou, cheio de orgulho. Ele havia trabalhado no” grupo da soca”, na Chave do Pires, pessoal encarregado da manutenção do leito ferroviário em bom estado, que existia a cada 10 KM.
Narra a tradição oral que a estação de Cantagalo seria, inicialmente, construída no Triângulo. Todavia, as autoridades da época e a sociedade consideraram o local distante e fora da cidade, sendo, então, o local mudado para onde está hoje a estação rodoviária Cel. Manoel Marcelino de Paula, em um estreito vale, o que obrigava o trem chegar de ré e sair de frente, o que era motivo de gozação pelas cidades da região.
Houve, todavia, um dia, em que o trem entrou de frente, com a bandeira nacional e o apito agudo aberto e saiu de ré, devidamente autorizado pela direção de ferrovia. Foi no início de março de 1945, quando o Dr. Carvalho tomou posse como Prefeito de Cantagalo. Os ferroviários prestavam, desse modo, uma homenagem, quebrando normas de serviço, àquele que, durante 38 anos, cuidou da saúde dos valentes ferroviários e de suas famílias e que, também, se julgava um ferroviário!
Júlio Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo, e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo.