“Sr. Diavolasse”, por Dr Júlio Carvalho

Outrora, se alguém, ao chegar a Cantagalo, perguntasse onde morava o Sr. Diavolasse, provavelmente ficaria sem resposta; todavia, se quisesse saber sobre o Sr. Zinho Barbeiro, todos apontariam a barbearia situada no coração da cidade, defronte a Praça dos Melros (hoje, Praça João XXIII).

Ali encontrariam um amplo salão de barbeiro, com duas portas e um profissional falante como todo barbeiro, educado, com boa cultura e sempre bem-disposto a contar casos antigos e engraçados envolvendo pessoas de Cantagalo. Atendendo seus fregueses sempre de terno e gravata.

Seu Zinho Barbeiro era um cantagalense, nascido no dia 21 de setembro de 1901; como gostava de dizer, era um cidadão do século XX; filho do casal José Pacheco dos Reis e Da. Isabel de Oliveira Reis, conhecida na cidade como Da. Bebé, pessoa bondosa, católica e sempre preocupada com a Festa dos Carecas. Era querida por toda população; creio que morreu com mais de 100 anos.

Enquanto na parte da frente funcionava a barbearia, a parte de trás era a habitação da família, composta por Da. Hermínia de Lima Reis, com quem seu Zinho havia casado em 1928, seus oito filhos, seus irmãos Waldir e Semíramis (Neném Reis), que trabalhavam ajudando na manutenção da grande família Reis.

Embora tenha feito só o curso primário em colégio público, seu Zinho lia bastante, sendo um cidadão de boa cultura e excelente palestra; gostava muito de citar um filósofo hindu cujo nome eu não guardei. Era comum Da. Hermínia levar um café, feito na hora, para o marido e alguns fregueses, coisa que não acontecia em nenhuma barbearia, sendo um diferencial. Seu Zinho me contou que, certa vez, fazia a barba de um padre português que dirigiu a paróquia de Cantagalo; que este, após cheirar e beber o café muito quente, exclamou: “muito obrigado, este é o verdadeiro café, negro como a noite, cheiroso como mulher bonita e quente como o inferno”.

Apesar da luta constante, era um homem alegre. Contou-me que, ainda muito jovem, aprendeu a profissão de barbeiro com o pai. Como não dispusesse de recursos financeiros para montar sua própria barbearia, no início era um verdadeiro barbeiro ambulante, indo à casa dos fregueses com seus instrumentos em uma pequena pasta a fim de atendê-los. Sendo um homem cristão e de boa formação, não cobrava das pessoas doentes, pobres e de alguns presos que atendia.

Muito jovem, ingressou na Loja Maçônica Confraternidade Beneficente de Cantagalo, onde permaneceu até o final da sua vida terrestre, ocupando todos os postos da sua administração, chegando ao grau 33. Na loja de Cantagalo, foi Grande Benemérito e Benfeitor.

Sempre preocupado com o bem-estar dos seus semelhantes, em 1930, ao lado de outros cantagalenses, reergueu a Casa de Caridade de Cantagalo, contando com o apoio do Cel. Marcelino de Paula, do Dr. Carvalho Junior, do farmacêutico Euclides Sant’Anna, do Dr. Francisco Leite Teixeira, do Sr. Abílio Morgado e de tantos outros, cujos nomes não me recordo.

Procurou equipar o hospital e remodelar o velho casarão. Construiu a parte frontal, onde, hoje, se situam a portaria, o pronto-socorro e o setor administrativo e conseguiu vários equipamentos.

Em agosto de 1965, quando retornei a Cantagalo, passando a trabalhar em nosso hospital, conversei com ele, mostrando a necessidade de ser construído um setor para internação dos pacientes portadores de doenças infectocontagiosas. Imediatamente, na sua barbearia, ele me disse: “Dr., já está feito”. Batendo com o dedo indicador na própria cabeça, concluiu: “Estando no nosso cérebro já está realizado”.

No dia seguinte, ao chegar ao hospital, o Sr. Manoel Felipe, zelador do nosocômio, me chamou do lado de fora do prédio e me mostrou o isolamento que o Sr. Zinho havia marcado na véspera, no final da tarde; tudo traçado no solo com pedaços de bambu. Eram duas pequenas enfermarias com banheiro; entre as duas um espaço com armário embutido para guarda de roupas do setor e medicamentos.

Pouco tempo depois, o prédio com cerca de cem metros quadrados estava construído, servindo para internação dos casos que exigiam isolamento. O prédio recebeu o nome de Pavilhão Paulo Torres, em homenagem ao cantagalense Marechal Paulo Torres, na época Governador do Estado do Rio de Janeiro. Assim era o seu Zinho Barbeiro!

Preocupado sempre com os sofrimentos dos semelhantes, durante muitos anos foi o assessor voluntário do Senador Filhinho Nunes, na construção e funcionamento do Hospital Na. Sra. da Conceição, no vizinho município de Duas Barras.

Na política, o seu Zinho teve, também, participação ativa; pertenceu ao P.S.D., sendo eleito vereador. Bom orador, atuou ativamente na Câmara Municipal de Cantagalo.

Era um homem brincalhão e inteligente. Certa vez, enquanto fazia a barba de um pastor evangélico, este começou a se queixar que por mais que se esforçasse não conseguia aumentar o número de membros da sua igreja. O Sr. Zinho, tranquilamente, disse: “enquanto o senhor não colocar uma procissão na rua com muitos santos, sua igreja não vai para frente”. O pastor preferiu calar.

Em outra ocasião, um dentista prático que trabalhava em Cantagalo, de nome Joaquim José Soares, conhecido como Bolachinha, veio a falecer; o seu Zinho não perdeu tempo e disse: “Viu, até as minhocas têm seu dia de bolachinha”.

No dia 23 de setembro de 1965, Da. Hermínia, sua esposa durante 37 anos, acometida de um acidente vascular cerebral hemorrágico, veio a falecer. A partir desse dia, seu Zinho não foi mais a mesma pessoa. Permanecia em casa, perdendo aquele entusiasmo que sempre foi marcante em sua vida. Acabou adoecendo com grave moléstia, internado em um sanatório de Nova Friburgo, onde permaneceu por algum tempo. Retornou bem-disposto, continuando o tratamento ambulatorial por mais algum tempo.

Certa tarde, encontrei-me com ele no jardim de nossa cidade, um ano depois da sua internação, e mantivemos o seguinte diálogo:

– Seu Zinho o senhor está bem, com boa aparência; já terminou o tratamento?
– Não, doutor, ainda estou tomando os remédios.
– Seu Zinho, o tratamento era de seis meses. Não precisa mais dos remédios.
– Não tem importância; os que tomei nos outros seis meses já servem para a próxima doença.

E deu uma sonora gargalhada. Vi, com alegria, que ele estava realmente curado. Sua alegria voltara!

Como todo ser vivente, no dia 16 de julho de 1991, aos 89 anos, seu Zinho Barbeiro partiu para a eternidade.

Dos seus oito filhos, dois permanecem vivos em Cantagalo, João Henrique e Marília, ambos professores aposentados do Colégio Maria Zulmira Torres; sendo que a filha reside no mesmo prédio onde a família sempre morou e tantas histórias foram contadas por seu saudoso pai enquanto trabalhava pela manutenção da família.

Estão vivos, também, seus netos e bisnetos, que continuam lutando pelo progresso da terra em que nasceram, dando sequência ao trabalho de seus ancestrais.

Muito ainda poderia ser escrito sobre o Sr. Diavolasse de Oliveira Reis (Zinho Barbeiro). Todavia, o importante é que, enquanto existir o Hospital de Cantagalo, ele também estará vivo, pois as duas histórias se entrelaçam, onde ele sempre foi figura marcante na vida daquela santa instituição.

Ver anterior

Co-fundador de uma das cinco principais desenvolvedoras de Software do Brasil recebe Medalha Tiradentes

Ver próximo

Banco Mundial e IBGE garantem que pobreza reduziu no Brasil nos últimos anos

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Mais Populares

error: Conteúdo protegido !!