“Tolerância zero”, por Celso Frauches

Tolerância Zero

Tolerância Zero

Por alguns anos, fui consultor de educação superior de um centro universitário em Anápolis (GO). Lá conheci e convivi com um professor da língua portuguesa radical. Ele comentou comigo que, indo a um supermercado da época, na década de 90, quando foi pagar a conta ao caixa, preencheu o cheque no valor da compra, escrevendo assim a quantia: R$ 1.001,00 (mil e um reais).

O caixa recusou o cheque, falando para o professor que o valor por extenso deveria ser “hum mil e hum reais”. Ele retrucou: “Meu filho, sou professor de português” e o agá (h) é um erro crasso. O correto é como eu escrevi. Ele chamou o gerente. Este manteve a instrução do caixa. Não tendo mais a quem recorrer, o professor deixou as compras no carrinho e foi embora.

 

Cheque
Cheque preenchido com “hum mil”

 

Esse foi o meu primeiro contato com alguém com tolerância zero sobre a língua portuguesa. A partir desse dia, fui colecionando as próprias tolerância zero. O zero à esquerda foi um deles.

Certa vez, indo a São Luís do Maranhão, a terra dos Sarney e do atual ministro da Justiça, que governaram aquele pobre estado – que continua pobre – e fui me hospedar em um antigo hotel de propriedade da falida Varig, que fica ao lado de uma praia. O hotel tinha dois andares e a numeração dos apartamentos era com o uso de placas de cerâmica, no formato mais ou menos de 15 x 20 cm, com números em grande formato, de forma artesanal. Cada andar tinha cinquenta apartamentos. A numeração começava do térreo: 001, 002, 003, 004 e assim sucessivamente, até chegar ao número cem. Qual a utilidade do zero à esquerda? Quem poderia adulterar a numeração dos apartamentos naquelas placas e para quê? Foram gastos 99 zeros sem nenhuma necessidade, escritos artesanalmente. Gastou-se cerâmica e serviço sem nenhuma utilidade. Possivelmente, o preço dessas placas seria reduzido à metade sem os zeros à esquerda. Tolerância zero.

Ia e vou aos bancos e todos os caixas estão numerados 01, 02, 03, 04 e assim por diante. Qual cliente vai comprar uma placa alterada e substituir aquela. Ninguém vai perder o seu tempo com uma bobagem dessas. Tolerância zero.

 

Caixas de banco
Caixas de banco

 

Quando eu via um outdor, com a data das provas de um vestibular, por exemplo, estava lá dia “01 de abril”. Erro crasso, o correto é “1º” e não 1 ou, pior, 01.

Eu ficava pensando qual o ser humano que vai parar embaixo dessa peça publicitária e alterar a data. Ele vai ter que portar os recursos de quem confeccionou o outdor para rasurar essa data. Quem será o maluco para isso? Não tem sentido. O mesmo em publicidade em jornais impressos e digitais. Qual leitor vai ler qualquer periódico e alterar as datas? Ninguém consegue. Tolerância zero.

Se fosse para alterar, era só colocar uma vírgula entre os algarismos, por exemplo, para reduzir o número a um décimo do seu valor absoluto: o 05 se transformaria em 0,5.

Mas o zero à esquerda passou, também, a ser inserido em cartazes, anúncios, números de guichês de atendimento em bancos, repartições públicas, número de residências, casas ou apartamentos, e inúmeras outras referências. Em cheques e documentos oficiais (petições, contratos, atos normativos, etc.), o zero à esquerda não assegura nenhuma lisura; nesses casos, os números devem ser escritos por extenso.

E o 01 de janeiro escrito na grande mídia quando o correto é 1º de janeiro? Será que o sujeito que faz essa besteira pensa que alguém vai adulterar a data para 11 de janeiro? Tolerância zero.

Com a introdução da computação e da informática no dia a dia das pessoas, das empresas, das organizações e dos poderes públicos, veio a necessidade de inserir o zero à esquerda dos números positivos, para preencher os milhares de formulários que nos são impostos pelos diversos processos e sistemas. Nenhum quadradinho à esquerda pode ficar em branco, nesses formulários eletrônicos. O zero à esquerda não acrescenta nada ao número, em termos de valor. Nesse caso, é um mero preenchimento de formulários eletrônicos.

Paralelamente, a expressão “zero à esquerda”, aplicável aos dois gêneros, passou a significar pessoa sem valor, inexpressiva, inútil, insignificante. Um zero à esquerda.

 

Assentos de avião
Assentos de avião

 

Há décadas, por necessidade de deslocamento entre cidades, com rapidez e mais segurança para o exercício de minhas atividades profissionais, agora reduzidas drasticamente para viver “meia aposentadoria”, usava o transporte aéreo, preferencialmente. Como diria o locutor esportivo, ao adentrar o gramado, ops, o interior do avião, e me sentar na poltrona reservada, vejo e leio, postada à minha frente, a seguinte mensagem: “Favor apertar o cinto enquanto estiver sentado”. Ficava e fico pensando, pela milionésima vez, “cá com os meus botões”: “Como vou apertar o cinto do banco, estando em pé?”. Tolerância zero.

Às vezes, quando chego a algum encontro profissional, recebo a pergunta: “Você já chegou?”. Tenho vontade de responder: “Não, esse é o meu clone”… E quando atendia alguém no telefone fixo de minha residência? De vez em quando, vinha a pergunta: “Onde você está?”. Uma tentação danada para dizer: “Na Lua!”. Tolerância zero.

Nos jornais da TV, a coletânea de perguntas despropositadas é frequente. O sujeito perdeu a mãe, que foi assassinada em um assalto, e o(a) repórter pergunta com um leve sorriso no rosto: “Como você se sente?”. Algo semelhante acontece quando o âncora do jornal, após noticiar trágico acontecimento, encerra a apresentação do noticiário com um “boa noite” e um simpático sorriso. Tolerância zero.

O ator Francisco Milani celebrizou a frase “tolerância zero”, em um programa cômico de TV. Falecido o ator, faleceu o personagem, o Saraiva, que ridicularizava questões como essas e outras mais bizarras.

 

"Cala a boca Ofélia"
“Cala a boca Ofélia”

 

A leitora e amiga Ilenir Moreira de Mello trouxe-me um caso de tolerância zero, em questão de língua portuguesa. Ela classifica mesmo como “crime”, pois é caso de alterar escrita poética de outro autor. Conta Ilenir que viu no jornal O Globo a 1ª estrofe do Hino Nacional Brasileiro com acento grave, indicativo de crase em: “Ouviram do Ipiranga às margens plácidas de um povo…”, alterando completamente o sentido do que disse o autor. Ele poderia ter escrito em linguagem direta: “As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico”. Mas certamente assim as palavras não se encaixariam nos versos melódicos. Por isso houve as inversões. Quem ouviu? Foram as margens do Ipiranga, que é o sujeito da frase. O acento grave mudou o sentido da informação do autor. Tolerância zero. Tanto que ela até entrou em contato com O Globo para fazer o registro. A emissora deu suas desculpas, mas o registro foi feito.

Tolerância zero”, contudo, foi slogan – e ainda é – de vários programas ou projetos governamentais destinados a eliminar a violência, a criminalidade e outras mazelas de membros de sociedades onde há governo sério, eficiente e eficaz.

 

Saraiva
Saraiva

 

Na sua clássica definição, “tolerância zero” tem como meta principal incutir o hábito do respeito à legalidade, à urbanidade, à educação e valores éticos, tendo por objetivo coibir delitos, desde os pequenos, para que a população sinta os efeitos imediatos dessa política.

Aconteceu, por exemplo, em Nova Iorque, há tempos, em um programa de “tolerância zero” com o crime, que começou por coibir drasticamente pequenos delitos, como urinar e jogar lixo em vias públicas. Isso, porém, não impede que simples mortais como eu, o Saraiva e outros apliquemos a expressão “tolerância zero” para os pequenos delitos de expressão e outros menos votados.

Eu, por exemplo, apresentei um projeto a alguns clientes de consultoria de educação superior, com o seguinte título: “Evasão acadêmica: tolerância zero”. Um perfeito ignorante da realidade do meio acadêmico me disse: “Jamais vai existir zero de evasão”. Mas eu repliquei: “Essa é a meta: 100%. Não existe meta de meio por cento. Pode não alcançar cem por cento, mas a meta é essa. Se chegarmos a 80% já está ótimo!”.

Ao escrever estas “mal traçadas linhas”, contudo, ponho-me a pensar se não serão classificadas, pelo possível leitor, como um zero à esquerda, ou seja, sem nenhuma utilidade… Serei vítima de meu próprio slogan – “tolerância zero”?

 

Celso Frauches é escritor, jornalista, historiador, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Mão de Luva.
Celso Frauches é escritor, jornalista, historiador, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Mão de Luva.

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Um Comentário

  • Excelente! Rindo alto aqui!
    Muito bem escrito, e cheio de lógica!

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