“Um Paraíso Perdido 2”, por Dr Júlio Carvalho

Na semana anterior, procurei mostrar alguns conceitos de Euclides da Cunha sobre a Amazônia. Hoje demonstrarei todo patriotismo e heroísmo do nosso ilustre conterrâneo no cumprimento de comandar a expedição brasileira que tinha a função de demarcar a fronteira do nosso país com o Peru, na selvagem e quase abandonada floresta amazônica.

Euclides da Cunha chegou a Manaus no dia 30 de dezembro de 1904 e deveria embarcar para a bacia do rio Purus imediatamente a fim de aproveitar o período das cheias dos rios da região amazônica. Todavia, em virtude de imprevistos ocorrido com as embarcações brasileiras, o embarque só ocorreu em 05 de abril de 1905, três meses depois da data marcada previamente.

O atraso de 90 dias para o embarque da expedição brasileira foi de terríveis consequências para nossos patrícios pois, perdendo a oportunidade de navegar no período das cheias, chegaram ao rio Purus exatamente na fase da vazante dos rios, o que criou vários obstáculos aos brasileiros.

Braga Sobrinho
Navio mercante misto a vapor Braga Sobrinho, construído em 1899, sendo muito utilizado em Belém, PA. Foto: Historicboatmuseum.org.

Enquanto a comissão peruana, chefiada pelo comandante Pedro Buenaño, em maior número que a comissão brasileira, viajava em lanchas menores e mais velozes, nossa comissão fora embarcada em navios maiores e mais pesados, o que dificultava a navegação fluvial no período da vazante, sendo comuns o encalhe nos bancos de areia dos rios, sem falar dos grandes paus arrastados pelos rios e que poderiam causar transtornos para a navegação.

A embarcação brasileira Manuel Urbano, que transportava os gêneros alimentícios para nossa comissão, formada apenas por 14 homens, é atingida por um desses paus, tem o casco perfurado e naufraga, salvando-se apenas a metade dos alimentos embarcados em Manaus, não havendo como repor as perdas em virtude da carência em plena floresta amazônica.

Além da carência de alimentos os brasileiros encontraram outros obstáculos, como a quantidade de mosquitos, que além de prejudicarem os trabalhos eram transmissores da malária, atingindo alguns membros da nossa expedição inclusive Euclides da Cunha, que permaneceu um dia febril e acamado.

Outra doença, decorrente da carência de alimentos ricos em Vit. B1, foi o beri-beri. Euclides, no relatório oficial enviado ao Barão do Rio Branco, declara que fora acometido de uma polineurite, que prejudicava seus trabalhos.

Contrariados com a carência de alimentos e expostos às doenças e riscos da floresta amazônica, ocorre uma rebelião na Comissão Brasileira, sendo cinco soldados presos por indisciplina e devolvidos a Manaus.

Quando a reduzida comissão nacional chegou a localidade de Novo Lugar, havia uma crise de beri-beri, que acometeu várias pessoas, inclusive o médico desse posto avançado do exército brasileiro. O comandante do posto brasileiro solicita o médico da comissão brasileira, sendo o pedido atendido por Euclides da Cunha, ficando nossa comissão reduzida a oito membros.

Mosquito da malária
Mosquito da malária

À medida que subiam em direção à cabeceira do rio Purus, as condições de navegação pioravam acentuadamente. Chegando a um determinado ponto, a navegação só era possível através de canoas construídas com troncos de árvores. Essas pesadas canoas, algumas vezes, permaneciam presas nos bancos de areia do rio, sendo arrastadas a braços, obrigando os brasileiros e entrarem no rio, inclusive o próprio Euclides da Cunha.

Narra o chefe brasileiro Euclides da Cunha em relatório ao Barão do Rio Branco: “Deste modo, ao chegar a Curanja, pisando a terra exclusivamente povoada de estrangeiros e tendo adiante uma dilatadíssima região a percorrer, restavam-nos apenas sete homens – e vinham estropiados, com os pés sangrando, corroídos das areias, porque durante a subida, numerosíssimas vezes tivemos que arrastar as canoas, vencendo sucessivos bancos oriundos do extremo esgotamento do rio.

Em Curanja, os peruanos oferecem um almoço ao chefe peruano Pedro Buenaño e a Euclides da Cunha. Ao penetrar no recinto, Euclides percebe que o mesmo está profusamente enfeitado com bandeira peruanas, enquanto nosso auriverde pavilhão se encontra completamente ausente. Euclides fica indignado e pensa em se retirar. Todavia, percebendo que entre as bandeiras peruanas estão colocadas folhas de palmeiras entrecruzadas com as cores verde e amarela, resolve permanecer e, em seu discurso de agradecimento assim diz: “Que uma extraordinária nobreza de sentir fizera que eles, ao invés de irem procurar no seio mercenário de uma fábrica a bandeira de meu país, tinham-na no seio majestoso das matas, tomando-a exatamente da árvore que entre todas simboliza as ideias superiores de retidão e de altura. Porque, senhores peruanos, a minha terra é retilínea e alta como as palmeiras.” O desapontamento entre os peruanos foi enorme. O feitiço havia virado contra o feiticeiro. Assim era o nosso Euclides da Cunha!

Numa tarde do mês de julho de 1905, ao chegar à foz do rio Cavaljani, último afluente do rio Purus, distante 3.200 Km do rio Amazonas, Euclides considerava fracassada a missão brasileira talo desgaste físico do que restava da comissão brasileira. Passa a noite em claro e na manhã seguinte tenta convencer o que restava do seu grupo da necessidade de mais um sacrifício pelo Brasil. Fala do amor à Pátria, mas tudo em vão.

Euclides da Cunha
Euclides da Cunha

Os últimos homens da comissão brasileira nem se levantam ante a chegada do chefe, mal alimentados, esfarrapados, com os pés feridos pelas pedras e areia dos rios percorridos, permanecem de cócoras em torno de uma fogueira, dois tremendo de malária. Apesar de todos os apelos de Euclides da Cunha permanecem abatidos, imóveis e indiferentes. Euclides sente que é o fim, a derrota perante os peruanos e a própria consciência.

Desanimado e descrente, Euclides olha para a direita e percebe que a comissão peruana composta por vinte e três homens bem alimentados e nutridos, se prepara para partir para mais um dia de trabalho, em sua leves e ligeiras embarcações. Percebe, também, que um sargento peruano, com passos firmes e solenes, marcha pela praia fluvial e coloca a bandeira peruana na popa do barco do chefe Pedro Buenaño. Esta, soprada pelo vento, logo se desenrola mostrando as cores alvirrubras do Peru.

Euclides toma aquela atitude como um desafio ao Brasil. Indignado, volta-se para os brasileiros para um último apelo e tem uma extraordinária surpresa: tocados pelo mesmo sentimento de brasilidade, os homens que restavam da sua comissão estão de pé, perfilados perante o pavilhão brasileiro hasteado, cantando com orgulho o belo hino nacional brasileiro. E partem para mais um dia de trabalho e sacrifício pelo Brasil.

No seu relatório, Euclides da Cunha declara que no dia 24 de julho de 1905, “a ração da comissão brasileira se reduzia em carne seca, farinha, que acabou ao fim de doze dias, um pouco de açúcar, que só durou três dias, meio garrafão de arroz e uns restos de bolachas comprados em Curanja.

Desnutrida, a comissão brasileira continuava em direção as nascentes do rio Purus, quando as embarcações ficavam presas nos bancos de areia, os últimos membros penetravam nas águas com Euclides a frente envolvido na bandeira nacional.

A Floresta Amazônica ocupa grande parte do Peru e da Região Norte do Brasil
A Floresta Amazônica ocupa grande parte do Peru e da Região Norte do Brasil

Finalmente, no dia 30 de julho de 1905, a comissão brasileira atinge as cabeceiras do rio Purus, depois de superar o frio, as chuvas, a fome, a malária, as doenças locais, a ameaça dos índios peruanos, o orgulho da comissão peruana melhor equipada e os saltos de 74 cachoeiras dos rios brasileiros.

Extasiado, ao atingir as cabeceiras do rio Purus, Euclides assim se expressou: “os nossos olhos deslumbrados abrangiam, de um lance, três dos maiores vales da terra; e naquela dilatação maravilhosa dos horizontes, banhados no fulgor de uma tarde incomparável, o que principalmente distingui, irrompendo de três quadrantes dilatados e transcoando-os inteiramente – ao sul, ao norte e a leste – foi a imagem arrebatadora de nossa pátria que nunca imaginei tão grande.

Ao regressar ao Rio de Janeiro, Euclides da Cunha pretendia escrever um livro sobre a Amazônia com o título Um Paraíso Perdido. Segundo ele seria outro livro vingador, que superaria Os Sertões. Todavia, a morte o impediu de tal realização.

Em 1985, Leandro Tocantins, comemorando o 80º aniversário da viagem de Euclides da Cunha à Amazônia, lançou a primeira edição do livro Um Paraíso Perdido, coletânea de ensaios, estudos, artigos, pensamentos, cartas e entrevistas de Euclides sobre a Amazônia.

Cada vez que olharmos o mapa do Brasil nos limites com o Peru deveríamos ter presente e sentir muito orgulho de que aqueles limites foram traçados pelo mais ilustre cantagalense, EUCLIDES DA CUNHA.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

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