“Uma permuta ousada”, por Júlio Carvalho

De 1937 a 29/10/1945, Getúlio Vargas governou o Brasil com plenos poderes, período que ficou conhecido como Estado Novo; era uma ditadura e o presidente nomeava os governadores dos estados, com títulos de interventores. Para o Estado do Rio de Janeiro, o escolhido foi o oficial da marinha Ernane do Amaral Peixoto, genro do ditador Vargas. Todavia, por sorte dos fluminenses, era um homem tranquilo e de diálogo que, ao serem criados os partidos políticos, assumiu a presidência do P.S.D., partido de centro, que dominou a política durante muitos anos no Brasil.

Os prefeitos, por sua vez, eram nomeados pelos interventores estaduais, não havendo funcionamento do poder legislativo. Nesse aspecto, Cantagalo sofreu muito, tendo a maioria dos prefeitos completamente alienados dos problemas locais; em geral, eram de Niterói, na época capital do estado. Vinham pouco ao nosso município, não sentindo qualquer motivação pelo cargo exercido. Um deles chegou ao absurdo de vender o arquivo municipal, como papel velho, para a fábrica Santa Maria, de Além Paraíba–MG.

Tal situação gerava aborrecimento aos cantagalenses, até que, por solicitação do presidente do P.S.D., Coronel Manoel Marcelino de Paula, o interventor Ernane do Amaral Peixoto nomeou para prefeito de Cantagalo, no dia 1º de março de 1945, o Dr. Joaquim de Souza Carvalho Junior, mais conhecido como Dr. Carvalho.

Dr. Carvalho era médico dos ferroviários da Estrada de Ferro Leopoldina; cantagalense nascido na Fazenda do Gavião, em 6 de julho de 1898, filho de imigrantes portugueses; diplomado pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro em 1924; exercendo sua profissão em sua terra natal desde o ano seguinte.

Sua posse como prefeito foi uma festa magnífica, com a presença de duas bandas de músicas; a Sociedade Musical XV de Novembro, sob a regência do querido e saudoso maestro Carlos Gomes Pereira e a Sociedade Musical 8 de Dezembro, do município de Duas Barras, comandada pelo maestro Sebastião; enviada a Cantagalo, de surpresa, pelo Sr. Manoel Lutterbach Nunes (Sr. Filhinho Nunes), prefeito de Duas Barras algumas vezes e ex-senador pelo Estado do Rio de Janeiro.

Os ferroviários, por sua vez, quiseram homenagear o seu médico e conseguiram autorização para entrar com o trem expresso, pela primeira e única vez, de frente na estação, com a bandeira nacional na locomotiva e o apito agudo aberto totalmente.

Apesar de toda festividade, as dificuldades administrativas eram enormes e os cantagalenses consideravam que o interventor do estado dava mais atenção a Cordeiro, atendendo, sempre, as solicitações dos cordeirenses, deixando no esquecimento os problemas de Cantagalo.

Havia uma história interessante de que o interventor do estado, quando visitava Cordeiro, ficava hospedado na residência de um importante líder político daquela comunidade, e que, depois do jantar, se instalava em uma cadeira de balanço na sala de visitas. Enquanto a cadeira balançava e o interventor degustava biscoitos de cerveja, o líder municipal citava todas as necessidades locais, que, alguns dias depois, eram plenamente atendidas pelo interventor.

Querendo desfazer essa imagem negativa de sua pessoa, o interventor enviou a Cantagalo o seu secretário de Obras com a planta de um grande e belo prédio, onde seria instalado o grupo escolar. Como sempre, surgiu o eterno problema, situado em um estreito vale, contornado por montanhas, não havia terreno adequado a receber o prédio.

Não querendo perder o grande colégio, o prefeito Dr. Carvalho propôs trocar o velho cemitério municipal por um prédio estadual, abandonado no centro de Cantagalo. Imóvel em péssimo estado, com a metade do telhado caído e sem várias janelas. A proposta foi aceita pelo governo estadual desde que o terreno fosse limpo, isto é, retirados todos os túmulos e covas rasas existentes.

Mãos à obra, a prefeitura removeu todos os túmulos que estavam de pé para o atual cemitério municipal; enquanto os ossos das covas rasas foram transferidos para o ossuário comum. Estava tudo pronto, o estado inicia as fundações e enorme é a surpresa; surgiam ossos em cada buraco aberto no solo. O serviço é interrompido e o estado exige que a prefeitura faça uma escavação de dois metros de profundidade em toda área a ser construída.

A prefeitura aceita o desafio e realiza todo o trabalho de modo braçal, pois não havia máquinas naquela época. O volume de terra é gigantesco, dizem os entendidos que a terra cavada rende 40%. Pior que a terra foi a quantidade de esqueletos encontrados, ninguém conseguia entender.

Finalmente, um dos moradores mais antigos de Cantagalo, o Sr. Henrique Costa, decifrou o mistério, contando que: “na época da epidemia de febre amarela, os mais ricos transferiram as residências para o Rio de Janeiro, Niterói e outra cidades, permanecendo os mais pobres e da classe média em Cantagalo. O governo do estado enviou para cá médicos e equipes de saúde para minorar a situação. Os atingidos pela doença eram em número enorme. Cada dia, pela manhã, os médicos visitavam os doentes e os que estavam mortos eram recolhidos por dois funcionários públicos e colocados em uma carroça, puxada por um burro. Cada vez que o veículo estava completo, era levado para o cemitério e os corpos sepultados em uma vala comum”. Dantesco! Terrível!

Terminada essa etapa das escavações, cabia a prefeitura remover as pilhas de ossos formadas e o excesso da terra que sobrou. Os ossos foram removidos no único e pequeno caminhão que a prefeitura possuía; quando os ossos eram colocados em excesso e o caminhão trepidava, alguns caiam, motivando protesto de alguns populares e, principalmente, do Dr. Cássio Passos Barreto (Dr. Cassinho), presidente da U.D.N., partido da oposição; bom poeta, que protestava em versos distribuídos pela cidade.

Quanto à terra, a situação era bem mais complexa; o volume era enorme, o caminhão municipal pequeno e o Estado solicitava pressa; o que fazer?

Convidado, o Prof. Kato, de origem japonesa, que lecionava desenho no Colégio Anchieta, veio a Cantagalo, examinou o volume de terra a ser removido e traçou o desenho das muretas e dos caramanchões que circundam o jardim de Cantagalo; obra municipal executada pelo construtor português David da Costa Lage e sua equipe.

Graças a persistência do prefeito Dr. Carvalho que, pacientemente, suportou todas as críticas da oposição e dificuldades financeiras da época, três importantes obras frutificaram em Cantagalo:

– Restauração de um velho pardieiro, na rua Maestro Joaquim A. Naegele (motivo do artigo da semana passada).

– Elevação e embelezamento da atual Praça Papa São João XXIII

– Construção do prédio da E.M. Lameira de Andrade (pelo governo estadual), que continua altaneiro sobre a colina do velho cemitério.

A propósito da E.M. Lameira de Andrade, ex-governador do Estado do Rio de Janeiro, Roberto Silveira, falecido precocemente em um acidente de helicóptero, ao visitar o estabelecimento de ensino, deixou gravado no livro de visitas: “neste local, onde, outrora, só se ouvia o choro da morte, hoje, ouvem-se as gargalhadas e os gritos de alegria das crianças, celebrando a cultura e a vida!

Portanto, valeu a remoção do velho cemitério, apesar de alguns protestos populares e da oposição política.

 

Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo
Júlio Marcos de Souza Carvalho é médico, ex-vereador e ex-provedor do Hospital de Cantagalo e atualmente é auditor da Unimed de Nova Friburgo

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