Artigo – Ferroviários (II), por Dr Júlio Carvalho

Sendo a cidade de Cantagalo um local que dispunha de uma oficina de reparos de trens da E. F. Leopoldina, era natural que o número de funcionários fosse maior que em outras localidades do mesmo porte, pois além dos funcionários do transporte ferroviário e dos burocratas que atuavam na estação e no escritório, eram necessários os mecânicos e o pessoal responsável pelo leito da ferrovia, “pessoal da soca”.

Existia em Cantagalo quase uma centena de ferroviários que, com suas famílias, formaram um componente importante da nossa comunidade urbana, na época, bem menor que hoje, uma vez que a população rural de Cantagalo era apreciável.

Apesar dos baixos salários pagos na época da Leopoldina Railway, mensalmente era injetado nas finanças da cidade um volume de dinheiro apreciável, situação que melhorou quando, no governo do General Dutra, a estrada de ferro passou para a rede ferroviária federal.

Meu pai, Joaquim de Souza Carvalho Junior, Dr. Carvalho, como sempre foi conhecido, foi médico dos ferroviários durante 38 anos. Com isso, tive muito contato com os membros dessa laboriosa classe. Além disso, tive três primos do lado paterno, um tio do lado materno e mais dois contra parentes que foram ferroviários, sem falar alguns colegas de colégio e outros amigos da infância e juventude que eram filhos de ferroviários.

Além da contribuição mensal dos ferroviários na economia de Cantagalo, ocorreu a participação dos mesmos em outros setores importantes da nossa sociedade.

Ferroviario FC, antigo clube de futebol de Cantagalo, formado pelos ferroviários
Ferroviario FC, antigo clube de futebol de Cantagalo, formado pelos ferroviários

Em determinado momento, preocupados com a falta de lazer para os ferroviários nos dias de folgas, algumas pessoas resolveram criar um clube de futebol para os mesmos: Sr. José Marinho Falcão (Chefe da estação), Sr. Miguel Caetano Mendes (despachante da estação), Sr. Pinho (Inspetor da Leopoldina) e meu pai. Conseguiram um terreno na margem direita do córrego das Lavrinhas, próximo a ferrovia.

Como esse terreno fosse irregular e não houvesse máquinas de terraplenagem, os ferroviários realizaram o trabalho pessoalmente, cortaram os barrancos com picaretas e enxadões, ao mesmo tempo que a terra resultante era colocada sobre coros bovinos que eram puxados e arrastados para corrigir as depressões do solo. Assim foi feito o gramado que até hoje existe.

Os ferroviários escolheram a cor vermelha para a camisa do clube em homenagem ao seu médico que era torcedor do América F.C., enquanto o escudo do time tinha o formato do escudo do Fluminense F.C. com as letra FFC. Era uma homenagem ao inspetor Pinho que era tricolor.

O time de futebol, embora fosse dos ferroviários, aceitava também a participação de jovens de outras profissões, sendo um meio de congraçamento de toda a juventude cantagalense. Realizou memoráveis partidas, sendo sempre as mais disputadas contra o Cordeiro F.C., terminando algumas vezes em brigas.

Quando o adversário era muito forte, o presidente do Ferroviário F.C. reforçava a equipe, convidando Orlando Regazzi (Cordeiro F.C.), Manoelzinho Augusto (Boa Sorte A.C.) e Lair Oliveira (Santa Rita A.C.). Mais tarde ocorreu a fusão do Ferroviário F.C. com o Cantagalense A.C., que era o clube social da cidade, funcionando no salão da frente, no andar superior, do prédio do Cine Teatro Elias. Aos domingos, na parte da tarde, havia as famosas domingueiras, bailes frequentados pela juventude cantagalense.

O Cantagalense A.C. possuía bons times de basquete e de vôlei, que jogavam na quadra descoberta e iluminada na praça onde hoje está o Ginásio de Esportes José dos Santos Vieira.

Trem em Friburgo
Trem passando na praça, em Friburgo

Outra participação importante dos ferroviários foi na construção civil. Na década de quarenta, o bairro do Triângulo possuía uma meia dúzia de casas de habitação e uma ou duas casas comerciais. Os ferroviários passaram a construir suas residências no local. Trabalhavam em sistema de mutirão, com ajuda mútua nos dias de folgas. Hoje, a quase totalidade de residências existentes da rodoviária Cel. Manoel Marcelino de Paula até o início da Av. Djalma Beda Coube, representa trabalho dos ferroviários para suas famílias.

Quando Juscelino Kubitschek, na epopeia da construção de Brasília, necessitou de dinheiro, apelou aos norte-americanos, recebendo uma proposta em que uma das cláusulas estabelecia que deveriam ser desativados os ramais ferroviários deficitários e substituídos por rodovias asfaltadas. JK, com muita dignidade, não aceitou a proposta, alegando que o Brasil, país independente, tinha autonomia para aplicar o empréstimo onde fosse necessário.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.
Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

Seu sucessor, Jânio Quadros, que esteve na presidência por apenas sete meses, aceitou o contrato dos EUA. Foi criada uma comissão mista Brasil-Estados Unidos para analisar os ramais ferroviários deficitários e, infelizmente o nosso ramal foi incluído na lista. Imediatamente, o Ministro Gal. Juarez Távora determinou que os trilhos fossem arrancados, locomotivas, vagões e carros de passageiros levados para Praia Formosa, onde algumas locomotivas foram cortadas a maçarico e outra permaneceram abandonadas.

O contrato era ótimo para os EUA, que venderiam ao Brasil asfalto, ônibus, caminhões, carretas, combustível, pneus e peças para reposição. Creio que o dinheiro nem chegaria ao Brasil, mas as mercadorias vendidas.

Hoje, a produção de cimento de três fábricas de Cantagalo é transportada em rodovias que não apresentam a segurança necessária, colocando em risco a vida de seus usuários.

Na minha passagem pela Câmara Municipal de Cantagalo, apresentei dois projetos de Leis que foram aprovados por maioria absoluta e homologado pelo Senhor Prefeito da época: 1º – O bairro do Triângulo passaria a ser denominado Triângulo dos Ferroviários; 2º – A praça do bairro passaria a ter a denominação de Praça Antônio Pinto Machado Junior, único ferroviário esmagado pelo tombamento de uma locomotiva, nos poucos acidentes graves ocorridos.

Apesar de leis, até hoje as placas com as denominações não foram colocadas pelo poder público municipal.

Escrevi no artigo anterior que o trem entrava em Cantagalo de ré. Todavia, toda regra tem exceção: houve um dia, em 1943, em que o trem, devidamente autorizado pela administração da Leopoldina, entrou de frente na estação, a locomotiva com seu apito agudo aberto e a bandeira do Brasil como ornamento cívico, foi o dia em que o médico dos ferroviários, Dr. Carvalho, tomou posse como Prefeito de Cantagalo, homenagem sincera e inesquecível dos ferroviários àquele que durante 38 anos cuidou da saúde dos trabalhadores da ferrovia e de seus familiares.

Atualmente, resta a saudade de uma classe de verdadeiros guerreiros que levaram, durante um século, num trajeto de quase 400Km, passageiros e mercadorias, fazendo chegar nas cidades e vilas o progresso que o Brasil tanto necessitava.

Júlio Carvalho é médico e ex-vereador em Cantagalo.

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