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Nos idos da segunda metade do século XIX, quando do ápice da produção cafeeira em Cantagalo, uma grave ameaça abateu-se sobre as grandes propriedades do município: a “moléstia do cafeeiro”. Emergiu, primeiramente, nas proximidades de São Fidélis, em 1869, avançou para sudoeste e, seguindo o curso do Rio Dois Rios, com voracidade incontrolável, dizimou os cafezais em suas margens. Posteriormente, em 1875, galgou os cursos dos rios Negro e Grande, deixando para trás inexorável rastro de destruição. Ao distanciar-se das imediações dos cursos d’água, a partir de 1879, alastrou-se amplamente pela região, destruindo lavouras em grandes proporções, causando incontáveis (e antes impensáveis) prejuízos aos produtores. A “praga do café”, provocada por um “nematoide” (verme que se aloja nas raízes das plantas, dificultando a absorção de nutrientes), à época, ficou popularmente conhecida como o “Mal de Cantagalo”.
Se somarmos a esse flagelo a intensa degradação das terras (causada pelas técnicas de cultivo então praticadas), e, nesse contexto, acrescentarmos também a abolição da escravatura, teremos o cenário histórico que, em um curto intervalo de tempo, reduziu a pó parcela considerável das riquezas dos, até então, poderosos cafeicultores cantagalenses, e lançou o município, antes um dos principais sustentáculos econômicos do Império Brasileiro, na mais grave crise econômica vivenciada em toda a sua jornada pelo tempo.
Quem se mostra atento ao que a história ensina e mantém-se disposto a aprender com as suas, por vezes, dolorosas lições, é levado a concluir, em se considerando a situação exposta acima que, no passado, a extrema dependência em relação a uma única fonte de renda levou à ruína, numa vertiginosa sucessão de acontecimentos, as portentosas fortunas dos barões do café, causando, neste segmento do Vale do Paraíba Fluminense, uma ruptura no tecido social ainda não devidamente avaliada e mensurada pelos historiadores. Em face disso, outro arranjo social e econômico teve que ser, a duras penas, estabelecido, como fonte de trabalho e renda para o município, arranjo esse assentado na pecuária e na retomada, em maiores proporções, da lavoura de subsistência.
Promovendo um salto histórico de mais de meio século, na década de 1970, inaugura-se, em terras cantagalenses, outra expressiva atividade produtiva. O “progresso” e as oportunidades de alavancagem econômica do município nos seriam legados, agora, na visão de muitos, pela industrialização do calcário. Três fábricas de cimento, pertencentes aos maiores grupos empresariais deste ramo no Brasil e no mundo, passaram a operar, onde, no século XIX, imperava o café. A então pífia arrecadação da administração pública municipal saltou exponencialmente e, a partir deste momento, os gestores que se sucederam, passavam a contar, através dos recursos advindos do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços), com importante fôlego financeiro, capaz de engendrar uma nova era de desenvolvimento no município.
Mas, ironicamente, não foi isso o que ocorreu. A, então, vultosa receita não foi aplicada com a perspicácia e a pertinência devidas e passou a nutrir, muita das vezes, malfadadas práticas, que, desde sempre, infestam a política brasileira, em relação às quais, Cantagalo não se mostrou imune. Obras públicas houve, temos de reconhecer, não somente com recursos próprios, como também com o aporte de verbas estaduais e federais, mas o que não houve foi exatamente o mais importante: uma visão de futuro, na qual os recursos oriundos da industrialização do calcário deveriam potencializar o desenvolvimento de novas áreas da economia do município, gerando a necessária diversificação das atividades produtivas.
O discurso de que as jazidas calcárias tinham potencial quase infinito, garantindo ao “Terceiro Maior Polo Cimenteiro do Brasil”, incontáveis décadas de fabulosa arrecadação, eclipsou qualquer visão estratégica de médio e longo prazos. Desavisadas sobre as duras lições do passado, as sucessivas administrações municipais desenvolveram uma espécie de “dependência química” em relação ao ICMS do cimento, impedindo que outras tantas potencialidades econômicas das terras cantagalenses – como o turismo cultural e histórico, por exemplo – fossem consideradas seriamente em sólidos planos estratégicos, já que estes últimos, por vezes, não passaram de retórica pirotécnica de palanque eleitoral, ou mesmo de elemento decorativo dos programas de governo, que se dissipavam (e ainda se dissipam!) como fumaça, no dia a dia das administrações recém-empossadas.
O drama reeditado da disputa pelas fábricas de cimento faz com que me venha à mente, caro leitor, a epígrafe do livro ‘As veias abertas da América Latina’, de Eduardo Galeano, grande escritor uruguaio falecido recentemente. Antes de apresentar a contundência do seu amplo e revelador diagnóstico sobre os flagelos que assolaram o nosso subcontinente, ele nos ensina: “a história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será”.
Que o futuro possa trazer ao povo cantagalense novas perspectivas e possibilidades de desenvolvimento, sem que necessitemos continuar convivendo e padecendo com o eterno retorno dos males do passado.
*João Bôsco de Paula Bon Cardoso é professor de sociologia e geografia, coordenador de Patrimônio Cultural do Projeto Fazenda São Clemente e um dos coordenadores do Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo.