“Santuário do Santíssimo Sacramento: lugar de desagravo e adoração”, por Celso Frauches

Consagração - Pe Celso e Pe Higor

Consagração – Pe Celso e Pe Higor

Foto de capa: Momento da consagração, com o Pe Celso e o Pe Higor

Sempre me perguntei por que, em meio a tantos santos populares – São Francisco, Santo Antônio, São João – a presença tão querida de Nossa Senhora – de Fátima, de Lourdes, das Graças –, por que foi o Santíssimo Sacramento o escolhido para ser nosso Padroeiro? E isso há 237 anos! Claro que o Santíssimo Sacramento está acima de qualquer santo e de Nossa Senhora. Ele é a presença viva e ressuscitada de Jesus Cristo entre nós, ontem, hoje, sempre! Mas a resposta à minha interrogação veio e me encantou. Vai de um desacato a um desagravo, ponto que mais me impressionou, me interessou e que destaco neste artigo, conforme o professor ANDERSON JOSÉ MACHADO DE OLIVEIRA, Coordenador na UNIRIO do Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo.

Estávamos na 2ª metade do século XVIII. Em Cantagalo, o garimpo ilegal do ouro era praticado porque quem extraía o “precioso metal” do leito dos rios não aceitava pagar o que se chamava de “quinto dos infernos”, que eram as taxas e impostos elevados cobrados à Colônia pela Coroa Portuguesa.

No comando dos garimpeiros que aqui atuavam, destacava-se MANUEL HENRIQUES, o MÃO DE LUVA, fundador de Cantagalo que, vindo das Minas Gerais, estabeleceu-se nesta região. Aqui era sertão, região de extensas matas e rios, índios bravos, cobras e muito ciúme e inveja entre os homens. Para enfrentar tudo isso, era necessário buscar proteção e proteção divina. Mão de Luva era homem de fé, e até ensinava sua fé ao seu grupo de garimpagem e, quem sabe, até aos índios. Os perigos eram muitos, havia traição e denúncias. Buscaram proteção, então, em algo que acreditavam ser sobrenatural: a bolsa de mandinga. Era um amuleto, um patuá, que continha: fragmentos de hóstias consagradas, pedaços de pedra d’ara (uma pedra colocada no altar e sob a qual havia a relíquia de um santo), desenhos e orações aos santos e ao Santíssimo Sacramento. Objetos sagrados usados em ritos mágicos. Isso era, e sempre será, motivo de escândalo!

 

Mão de Luva e seu patuá, objeto do desagravo. (Criação do designer gráfico Júlio César Alves)
Mão de Luva e seu patuá, objeto do desagravo. (Criação do designer gráfico Júlio César Alves)

 

Afinal, que é o Santíssimo Sacramento para os católicos? Ele é o próprio Sacramento da Eucaristia, que contém realmente o Cristo em pessoa, o próprio Autor da Graça. Pela Consagração do pão e do vinho na Santa Missa se efetua a conversão de toda a substância do pão e do vinho na substância do Corpo e do Sangue de Jesus Cristo. É a Transubstanciação. Assim, em todos os altares do mundo em que se celebra a Santa Missa está presente, sob as espécies do pão e do vinho, o próprio Senhor do céu e da terra, NSJC. O desrespeito à Hóstia Consagrada é desrespeito ao próprio Jesus…

A bolsa de mandinga foi considerada, então, uma profanação ao sagrado, ao mais sagrado.

As notícias se espalharam: ouro, impostos sem pagar, sacrilégio com o Santíssimo. A Coroa Portuguesa, o Rei, a Inquisição de Lisboa apareceram, claro. Resultado: garimpeiros presos, Mão de Luva denunciado, mas não preso. Afinal, ele sempre carregava a bolsa da mandinga pendurada ao pescoço, o que o tornou um personagem meio lendário, pois diziam que isso o fazia ter “o corpo fechado”. Conta-se que fazia peripécias com seu cavalo, saltava sobre rios, casas, escapava de emboscadas… Ele certamente a usava como proteção aos perigos da época, às vezes de bichos, às vezes de gente.

Na verdade, a Inquisição queria proteger a fé, não aceitava a profanação ao Santíssimo. Lembremo-nos de que era tempo de união entre Igreja e Estado e, onde estivesse o Santíssimo, ali estava a Coroa, a Igreja, a Fé.

O que os garimpeiros faziam com aquelas práticas sacrílegas, talvez sem completa consciência de que o fossem, era um DESACATO AO SANTÍSSIMO. Seria necessário um DESAGRAVO!

 

Presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento - Hora da Consagração
Presença real de Cristo no Santíssimo Sacramento – Hora da Consagração

 

A partir de 1784, com a Inquisição e a Coroa presentes aqui, abrem-se processos, investigam, fazem sumários de culpa: alguns garimpeiros foram presos, Mão de Luva denunciado. Demorou um pouco, mas, apesar de todo o poder e proteção que acreditavam que ele gozava por conta do patuá que carregava, acabou sendo preso também, em 1786, não pela Inquisição, mas pelo Governo de Minas Gerais, e enviado ao Rio de Janeiro. Não se tem registro, ao menos por enquanto, de como Mão de Luva terminou seus dias.

E O DESAGRAVO CHEGOU!

Em 1786, o novo arraial começa a se formar em torno da 1ª Capela do Santíssimo Sacramento das Minas Novas dos Sertões de Macacu. O Santíssimo Sacramento começa a ser aqui honrado, adorado, desagravado. A capela era pobrezinha, de pau-a-pique, mas foi ali que tudo começou. Nosso primeiro vigário foi Padre José Pires dos Santos que serviu ao Senhor na Capela por cinco anos.

Vinte anos depois, em 1806, por ato do Príncipe Regente D. João VI, foi criada a Paróquia, como Freguesia do Santíssimo Sacramento, funcionando ainda na Capela.

A Matriz demorou mais de 90 anos para ficar pronta e ser inaugurada em 1878, quando já éramos município de Cantagalo desde 1814. Obra de Igreja é assim!

 

Interior da Matriz, em 1920, antes da reforma dos anos 50. O sermão era feito no pulpito perto do altar de Nossa Senhora da Dores. Foto: Acervo de Jorge Ferreira / Baú do Santuário
Interior da Matriz, em 1920, antes da reforma dos anos 50. O sermão era feito no pulpito perto do altar de Nossa Senhora da Dores. Foto: Acervo de Jorge Ferreira / Baú do Santuário

 

A inauguração da Matriz contou com a presença ilustre de D. Pedro II, Imperador do Brasil que, numa visita anterior a Cantagalo, durante a obra, determinou fossem feitas as colunas do altar e alguns entalhes que aí estão até hoje.

Depois vieram as doações dos sinos que marcaram nossa vida por longos anos… O sino principal foi doado pelo Bernardo José de Souza, proprietário da Fazenda São Lourenço, de Cantagalo. O sino menor, no qual se lê a data de 1816, não se sabe a origem, mas, pela data, conclui-se que seria da Capela. E o relógio, de origem francesa, foi doado pela Câmara Municipal, em 1885.

Nossa linda Matriz passou por muitas reformas durante sua longa existência, porém, sem dúvida, a mais importante e mais significativa foi feita nos anos 50, com toda a coragem e ousadia de nosso querido Padre Crescêncio Lanciotti. Ele foi nosso Pároco por 42 anos e nunca mais nos deixou, pois seu corpo está sepultado na Capela do Santuário. Essa reforma inclui obras de arte primorosas, nos quadros de Nardi, nos vitrais de Zucca, no altar/mármores de Uzai. Se o nosso Padroeiro precisou de um desagravo pelas injúrias recebidas, sem dúvida foi mais que nunca honrado nas pinturas que cobrem paredes e teto, todas nos remetendo ao sublime mistério da Eucaristia, nosso Santíssimo Sacramento.

 

Interior do Santuário Diocesano do Santíssimo Sacramento atualmente.
Interior do Santuário Diocesano do Santíssimo Sacramento atualmente.

 

Em 4 de junho de 2015, num belo e ensolarado dia de Corpus Christi, com a cidade toda decorada por tapetes artísticos, tivemos nossa maior alegria: nossa Paróquia foi elevada a Santuário!

Somos o SANTUÁRIO DIOCESANO DO SANTÍSSIMO SACRAMENTO, por Decreto do Bispo Diocesano da época, D. Edney Gouvêa Mattoso. Ele justificou sua decisão por ser nossa Paróquia uma das mais antigas e a única da Diocese dedicada ao Santíssimo Sacramento. Como poucas no Brasil também. Disse D. Edney: “Este local será um ambiente de peregrinação e adoração à Santíssima Eucaristia, que é o Sacramento do sinal do amor de Deus para com a humanidade.

 

D. Edney passa às mãos de Padre Jefferson o decreto de elevação da Paróquia a Santuário Diocesano do Santíssimo Sacramento.
D. Edney passa às mãos de Padre Jefferson o decreto de elevação da Paróquia a Santuário Diocesano do Santíssimo Sacramento.

 

Sim, agora minha interrogação sobre a escolha do Santíssimo Sacramento como nosso Padroeiro ficou luminosamente respondida! Nós fomos escolhidos no decorrer dos séculos para honrar, adorar, desagravar o Santíssimo Sacramento de todas as ofensas e sacrilégios que sofreu, e sofre mais que nunca hoje, não só por aqueles pobres garimpeiros, mas por tantos homens e mulheres de todos os tempos e lugares.

Cantagalo foi escolhido para cantar a seu divino Padroeiro:

Estou aqui para…
Te amar por quem não te ama
Te adorar por quem não te adora
Esperar por quem não espera em ti
Pelos que não creem
EU ESTOU AQUI!

 

Celso Frauches é escritor, jornalista, historiador, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Mão de Luva.
Celso Frauches é escritor, jornalista, historiador, pesquisador e diretor-presidente do Instituto Mão de Luva.

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Cantagalo apresenta nota máxima no indicador de Liquidez e excelente nível de autonomia, segundo a Firjan

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4 Comentários

  • Excelente texto! Porém temos que dar os créditos ao historiador que, através de laboriosa pesquisa documental, concebeu a hipótese do “desacato e do desagravo”; trata-se do Professor Dr. Anderson José Machado de Oliveira, Coordenador na UNIRIO do Centro de Memória, Pesquisa e Documentação de Cantagalo.

    • Querido Professor João Bosco
      Este texto saiu no meio de uma grande pressão causada por razões de saúde de Celso Da Costa Frauches. E por minha prontidão em substituí- lo mesmo sem ter competência para tal. Na próxima edição do JR sairão as explicações para os dois fatos, o que não perdoa a omissão dos créditos ao querido Professor Anderson que nos maravilhou com sua pesquisa na 3a. Conferência da Cidade.

  • Parabéns a Celso, Ãngela, Professor Anderson e, acredito, outros estudiosos e pesquisadores que tornaram possível este texto primoroso sobre o Santuário do Santíssimo Sacramento de Cantagalo.

  • Parabéns a todos vocês. Maravilhosa pesquisa. Fico honrada pela beleza de nosso Santuário e que o Santíssimo Sacramento seja sempre Adorado por todos.

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