“Nosso destino final”, por Amanda de Moraes

Criança no cemitério

Criança no cemitério

O 2 de novembro é um dia biográfico no Brasil. São 24 horas para se recordar com respeito, reflexão e saudade daqueles que fizeram da vida de seus entes e da sociedade uma espécie de arte. É um dia que também lembra a certeza maior: quando for chegada a hora, a cortina será fechada.

O mundo é um palco e todos os homens e mulheres são apenas atores”. Essa frase, de William Shakespeare, é bastante conhecida, por tocar mesmo aqueles que não conhecem a literatura do autor de Romeu e Julieta.

Ao longo do roteiro real, são escolhidos os mais diversos papéis: advogada, política, professora, esposa, freira, líder budista. A ampla possibilidade de decisão nos faz refletir se somos realmente livres, porque, para cada uma, há uma renúncia (mesmo que entendamos a profundidade do debate sobre meritocracia).

Se escolhe seguir o Direito, existe a renúncia a vários outros caminhos profissionais. Qual é a pena a ser paga por seguir esse caminho? As dores e os percalços sempre existirão, apenas serão diferentes. Trilhas distintas, sofrimentos alternados. No entanto, estarão lá. Para qual destino final levará a trajetória? Se há uma certeza possível, é apenas (aos mais privilegiados) da certidão de óbito, acompanhada de uma cerimônia entre amigos e familiares. Não como, quando e por qual razão, todos chegarão lá, em algum momento ainda não sabido.

Em carne e osso, algumas pessoas possuem mais facilidade em atuar em diferentes frentes, serem conduzidas pelo ir e vir, fluxo e refluxo da maré. Existem as que estão tão identificadas com o papel exercido que o vislumbre de mudar de personagem ou cenário já causa paralisia. O filme da vida está bom? Não importa, o costume acomoda, de tal forma que a lama faz às vezes de cama.

Não há nada mais perigoso do que a zona de conforto” – registrariam os mais aclamados best-sellers sobre os 100 hábitos dos invencíveis da alta performance. Ali ficamos, ali permanecemos, entorpecidos pelas mais diversas distrações, para não olharmos para o que realmente incomoda. Para não olharmos para a mudança, porque mudança exige coragem.

É preciso lembrar que o palco não é eterno. É um breve vislumbre, passageiro, rápido. O episódio é perene. Ademais, leva-se em conta a busca por bens materiais. Para transitar neste mundo, comida no prato, uma boa escola, casa confortável: é um sonho de muitos. Quando a hora da cortina chegar, a mansão que deixaremos será enaltecida para os próximos da fila garantida pelo Código Civil. Para os outros, os não herdeiros, um fato que pouco importará, a menos que seja motivo de conflito a ser estampado em matéria de portal sensacionalista. Heranças, principalmente de pessoas públicas, geram audiência.

No Dia de Finados (termo que remete ao fim), fui visitar minha família no cemitério São Francisco de Paula, em Trajano de Moraes, no Rio de Janeiro. Passei a prestar atenção em cada pessoa que por ali passava com flores e velas. As lamentações dos visitantes não eram pela matéria que os mortos deixaram para trás. Os choros vinham pelos sorrisos que cada pessoa conquistou em vida, pelos corações que tocaram, pela ajuda que deram ao próximo, honrando o que Pessoa registrou: “Tudo vale a pena quando a alma…

A partida traz consigo poesias, músicas, filmes, enredos, filosofia e emoção. Lá no cemitério, um mais saudosista, em pleno dia 2, assoviava Raul Seixas: “O trem vem surgindo de trás das montanhas azuis. Está chegando na estação, é o trem das sete horas, é o último do sertão.” Pensei: minha hora longe será?

Por mais que talvez esteja próxima, consegui conhecer o meu papel. Conheci Raul, Shakespeare e Pessoas (o poeta e outros artistas). Tive uma família. Acertei no amor. Errei também. Fui guiada por geniais juristas. Emocionei-me com as crianças. Tive coragem. Tomei decisões. Neste exato instante, tenho um leitor. Preciso de mais? Se o tempo e a carne forem gentis, farei mais daquilo que penso como o final de fato (nesse caso, finalidade, propósito): honrar o nome que me foi dado, latim de amor, Amanda. Na lápide, espero uma poesia, versificada em resumo às minhas tantas cenas, em que talvez tenha sido dramática, mas nunca encenadas sem o coração. E você? Temeria o destino final?

 

Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes
Amanda de Moraes Estefan é advogada, no Rio de Janeiro, e sócia do escritório Mirza & Malan Advogados. Ela é neta do ex-prefeito de Trajano de Moraes, João de Moraes

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